quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O NOVO MESSIANISMO


Escravizados por Roma, os hebreus esperavam a chegada de um Messias-Rei que restauraria o Estado nacional de Davi. Entre os primeiros cristãos, esse  messianismo tinha se transformado na espera do retorno em glória de Cristo que faria chegar o fim dos tempos. O Messias judeu, ungido do Senhor e rei dos judeus, converteu-se  em Cristo redentor de todo o gênero humano.
O retorno de Cristo foi esperado pelos cristãos por mais de um século; depois, o declínio dessa esperança suscitou a instituição de uma Igreja por séculos e milênios.
O malogro do retorno de Cristo engendra a vitória da Igreja.
A espera cristã pelo fim dos tempos adormece, com algumas interrupções locais e temporárias em seitas exaltadas.
No século XVII, uma explosão de messianismo incendiou a alma de comunidades sefardis do Império Otomano.
Mass é dentro do espírito laico dos judeus-gentios europeus que, nos séculos XIX e XX, o messianismo ressuscita: judeu por sua origem, cristão pelo seu caráter universal, torna-se o anúncio de uma salvação terrena.
O novo messianismo judaico-gentílico combina a esperança judaica e o universalismo cristão. Ele encontra suas condições de emergência na fé no progresso, advinda do Iluminismo, expressa por Condorcet como uma certeza histórica, e na filosofia de Hegel, para quem o devir conduz à apoteose do Espírito.
Os jovens hegelianos judeus-gentios, tais como Max Stirner, Bruno Bauer, Ludwig Feuerbach e sobretudo Karl Marx, fizeram emergir do caldeirão de cultura hegeliano um messianismo revolucionário.
Marx, espírito racional extremamente poderoso, não suspeitava de forma alguma da inspiração místico-religiosa que o fazia designar o proletário como novo Messias redentor, anunciar um apocalipse - a luta final contra as forças tenebrosas do capitalismo - e predizer o fim da história na realização de uma sociedade socialista universal, livre da exploração, da servidão e da dominação.
A fundação do socialismo europeu se beneficiou de uma importante contribuição judaico-gentílica, a começar por aquela do próprio Marx. O internacionalismo que dele decorria suscitou a adesão crescente dos judeus-gentios universalistas; judeus-gentios emancipados pela nação aspiraram a uma emancipação - muito além dos judeus e das nações - da humanidade inteira.
Aqueles que aderiram à socialdemocracia combinavam os laços com sua nação e a adesão internacionalista. Em contrapartida, aqueles que aderiram ao bolchevismo e se tornaram comunistas consideravam as nações, suas culturas, suas religiões, istificações, ilusões e superstições como tantas outras que impediam o acesso à fraternidade universal. Eram totalmente universalistas, mas de um universalismo abstrato, que ignorava as realidades concretas das nações, das culturas e das religiões, assim como seu enraizamento profundo nos espíritos.
No império czarista, a mensagem revolucionária laicizou em parte o messianismo religioso que foi o chassidismo. Esse movimento de piedade mística, levado pela esperança de redenção, havia nascido no século precedente talvez sob a influência indireta do sabetaísmo, como sugere Gershom Scholem (*).  Os judeus-gentios do império czarista, submetidos às discriminações e às humilhações, ameaçados de pogroms, foram aqueles que viveram a fé na revolução de maneira mais ativa e mais ardente, e forneceram um grande número de dinamizadores do partido bolchevique, que conta em seu gabinete político com Zinoviev, Karnenev, Radek, Litvinov, Sverdlov, Kaganovitch, e depois o socialista revolucionário Trotski.

(*) Les Grands coutants de Ia mystique iuive, Payot, 1950. (Edição brasileira: As grandes correntes da mística judaica, Coleção Estudos 12, trad. J. Guinsburg, Dora Ruhrnan, Fany Kon, Jeanete Meiches e Renato Mezan. São Paulo: Perspectiva, 1995.)
A partir do início do século XX, judeus-gentios de linha marxista, tais como Bernstein e Kautsky, compreendendo que a profecia de Marx de generalização do proletariado pelo achatamento das classes médias não se realizaria, e conscientes da necessidade de salvaguardar a democracia, tornaram-se "reformistas" que moderaram o messianismo, deixando de lado seu aspecto apocalíptico e inserindo-o num progresso gradual.
Entraram em conflito com os marxistas ortodoxos, sobretudo bolcheviques, para quem se tornaram renegados. Por outro lado, foram iudeo-gentios do Império Austro-Húngaro, como Max Adler e Otto Bauer, que, desejando evitar ao mesmo tempo a ortodoxia e o reformismo, tentaram preencher as lacunas do pensamento de Marx, principalmente no que concerne à realidade das nações.
A Primeira Guerra Mundial, reconhecida pelos marxistas ortodoxos como uma guerra entre imperialismos, e depois o surgimento, na desintegração da Rússia czarista, da revolução bolchevique, constituíram elementos que apareceram como a realização de um apocalipse em que se defrontaram, de um lado, as forças furiosas do mal e de outro, as forças da salvação. Tal foi a convicção não somente dos bolcheviques, que doravante se nomeavam comunistas, mas também de inúmeros revolucionários judeus-gentios como Rosa Luxernburgo(**) e Karl Liebknecht. A palavra "revolução" adquire então uma carga mística inaudita que porta em si uma parturição de um mundo novo liberto do Mal.

(**)  Entretanto, desde a tomada do poder pelos bolcheviques russos, Rosa Luxemburgo teve a consciência antecipatória da doença que adviria do bolchevismo. Escreve ela: -A liberdade apenas para os membros de um partido, por mais numerosos que sejam, não é liberdade. A liberdade é sempre a liberdade para aquele que pensa diferente. - (La Réyolution russe, trad. do alemão para o francês e com um prefácio de Gilbert Badia, Le Temps des Cerises, 2000). Rosa Luxemburgo, assim como Liebknecht, foi assassinada em 15 de janeiro de 1919.
A grande esperança messiânica também suscita vocações revolucionários nos gentios. O comunismo torna-se no século XX, a primeira (e talvez última) grande religião da salvação terrena. Inúmeros judeus-gentios foram seus prosélitos ardentes. Persuadidos de servir à causa universal da humanidade, desprezando as crenças e as identidades nacionais e religiosas, não hesitaram em liquidar fisicamente os inimigos de classe, os agentes imperialistas ou supostos como tais e todos aqueles que, aos seus olhos, constituíam um obstáculo à realização do comunismo universal. Depois de ativos durante a Revolução de Outubro, muitos deles tornaram-se agentes da Terceira Internacional ( Komintern ), trazendo seu devotamento sem limites para a causa da URSS, identificada como sendo a de toda a humanidade.
 Na URSS o proletariado foi subjugado pelo Partido que, se apoderando da missão que Marx havia conferido a esse mesmo proletariado. Torna-se o único detentor da Verdade politica e organiza seu próprio culto. Quando advém a primeira glaciação stalinista, nos idos dos nãos 1930,  repressão abate um grande numero de judeus-gentios comunistas.
Entre os judeus-gentios revolucionários tornados agentes do Komintern, alguns se revoltaram e denunciaram o stalinismo; alguns o fizeram cedo demais como Ciliga e Voline, outros só na primeira glaciação stalinista como Artur Koestler e Manés Sperber, enquanto outros só o fizeram após o despertar pós stalinista, nos anos 1950,  como o poeta Adam Wasyk.
Por sua vez, Trotski se opôs desde o início ao “comunismo num único país” e ao neonacionalismo soviético, e manteve em sua integridade a ideia internacionalista.
Em outros lugares, bom numero de intelectuais judeu-gentios apoderou-se da crítica marxista para abrir novos horizontes, mas sem alimentar alguma ilusão sobre a revolução. Os seguintes pensadores tornaram-se os metamarxistas mais fecundos: Ernst Bloch, Hans Jonas, Walter Benjamim, Theodor Adorno, Max Horkheimer, e Herbert Marcuse.
Também muitos judeus-gentios que  estiveram na ponta do anti- stalinismo, foram as vítimas do neonacionalismo e, depois, do anti-semitismo stalinista camuflado em luta contra o cosmopolitismo.
A esperança messiânica ressurge com a grande crise do capitalismo dos anos 1930, e com as ondas revolucionárias que conduziram à guerra civil espanhola e à Frente Popular na França. Ela se amplia no decorrer da Segunda Guerra Mundial, quando primeiramente a resistência da URSS ao nazismo, depois sua marcha vitoriosa e enfim seu triunfo pareceram  anunciar a era do socialismo universal. Depois da queda do Terceiro Reich, muitos judeus-gentios europeus sentiram grande reconhecimento pela URSS, que havia libertado Auschwitz.
Depositaram novamente nela uma esperança infinita e permaneceram durante muito tempo cegos ao anti-sernitismo dos últimos anos do reinado de Stalin.
Nos anos 1960, com o trotskismo ou o maoísrno, inúmeros judeus-gentios, sobretudo franceses, reencontraram, por sua vez, a esperança messiânica. Essa nova onda se dispersa por todos os cantos do mundo, ressuscitando a religião revolucionária, até que o colapso do maoísrno na China e em seguida a implosão da União Soviética aniquilassem essa esperança infinita.
O século XX assistiu à grande falência do internacionalismo. Os nacionalismos impetuosos de 1914 haviam desintegrado a Segunda Internacional Socialista. A Terceira Internacional transforma-se em satélite da URSS e esta promove de 1941 a 1945, uma "grande guerra patriótica" enquanto, em todos os cantos, os partidos comunistas brandiam as bandeiras de suas nações. Em 1989, os nacionalismos dos povos da União Soviética desintegraram-na.
O internacionalismo socialista foi um dos polos do mundo judaico-gentílico. Sob o impulso do neomessianismo, os judeus alimentaram os grandes  sonhos emancipadores da humanidade e carregaram em si não a esperança em outro mundo celeste, mas a aspiração, amiúde ardente, a um mundo terrestre diferente. Contribuíram para os sonhos e as realidades de nosso devir.
Marx, com seu pensamento inovador, crítico, ousado e original, revolucionou a concepção da história e da sociedade, e foi um  renovador, junto com Freud, de concepções antropológicas, históricas e sociológicas. O neomessianismo de Marx gerou uma mística revolucionária.
Entre tantas análises e descobertas, Marx compreendeu que a própria natureza humana é Histórica, o homem não nasceu ambicioso, egoísta, individualista e que no passado as pessoas se organizaram em comunidades para a produção de autoconsumo, de autossubsistência sem limites, até com sobras e excedentes, mas sem o mercado, com dependências pessoais fortes, interação e sociabilidade, que lhes faziam ter preocupação com o outro pois dele dependia também a satisfação de suas necessidades, apesar de que com outras comunidades houvesse um relacionamento indiferente ou agressivo e muitas vezes colonialista em prol do sustento e da manutenção e garantia da sua comunidade em particular.
No inicio do século XX em diante, uma parte do pensamento judaico-gentílico tentou abrir o marxismo ou, considerando-se suas insuficiências ou até mesmo suas carências, ultrapassá-lo, integrando-o.  Lukács, que em sua juventude reabriu o marxismo para a filosofia, submerge num dogmatismo stalinista antes de redescobrir no último instante uma filosofia da complexidade. Lucien Goldman e Joseph Cabel praticam um marxismo aberto. É sobretudo a Escola de Frankfurt - animada pelos judeus- gentios Theodor Adorno e Max Horkheimer - que renova o pensamento crítico de Marx, mas doravante privado do messianismo da revolução.  Ernst Bloch tenta reencontrar o "Princípio esperança", mas também ele sem certeza messiânica. Walter Benjamin descobre a importância e os problemas da "reprodução mecanizada", e especialmente inverte em seu contrário o otimismo da filosofia da história.
Benjamim compreende que  "civilização"  e " "barbárie" são termos não antinômicos, mas complementares. Seu desencantamento com a promessa revolucionária e sua intuição da catástrofe próxima, fazem-no ver o progresso não mais como uma marcha ascendente, mas como uma queda na direção do futuro, segundo a imagem do anjo de Klee: "O anjo do progresso que nos leva para a queda". Ele captou a regressão inscrita no progresso técnico e econômico. Para ele, a revolução socialista deveria agir como um freio de alarme instantâneo que detém o trem em sua corrida ensandecida na direção da catástrofe do planeta e do esmagamento do ser humano pela barbárie, pela escravidão e pela condenação à morte dos vencidos. (morte de fome e sede).

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