Aula de Filosofia 3º ano Ensino Médio
Maquiavel, o pai da filosofia política moderna - Segundo o filósofo Antônio Bento, o maquiavelismo “sobreviveu” ao seu criador, mesmo entre aqueles que se diziam seus inimigos políticos. Thomas Hobbes foi largamente influenciado pelas ideias do florentino ao compor o Leviatã
Maquiavel, o pai da filosofia política moderna - Segundo o filósofo Antônio Bento, o maquiavelismo “sobreviveu” ao seu criador, mesmo entre aqueles que se diziam seus inimigos políticos. Thomas Hobbes foi largamente influenciado pelas ideias do florentino ao compor o Leviatã
Por: Márcia Junges
“Os termos ‘maquiavelismo’ e ‘maquiavélico’ se
impuseram no imaginário político moderno europeu como sinônimos de uma ação
política baseada na fraude, na violência e na impiedade”, reflete o filósofo
português Antônio Bento, na entrevista que concedeu, ele acrescenta: “acusar um determinado
inimigo político de ‘maquiavelismo’ e estigmatizar publicamente os seus atos
como ‘maquiavélicos’, constitui, no fundo, uma simples arma de arremesso
político”. A influência política do pensador florentino, “a despeito de um
desprezo e de um ódio imensos, jamais deixou de se sentir. Pelo contrário,
antes ganhou mais e mais terreno, e, como de certa maneira não poderia deixar
de acontecer, preferencialmente no próprio seio daqueles que se declaravam seus
inimigos políticos”.
Antônio Bento é doutor em Filosofia pela Universidade da Beira Interior
— UBI, em Covilhã, Portugal, onde é vice-diretor do curso de Ciência Política e
Relações Internacionais. Aí integra como investigador o Instituto de Filosofia
Prática (IFP) e o Centro de Estudos Judaicos (CEJ). É membro do editorial da
revista Machiavelli and Machiavellism integrada no Progetto Hypermachiavellism
(www.hypermachiavellism.net). Organizou e editou Maquiavel e o Maquiavelismo
(Coimbra: Almedina, 2012) e Razão de Estado e Democracia (Coimbra: Almedina,
2012). Mais recentemente, organizou e editou (com José Rosa) Revisiting Spinoza’s
Theological-Political Treatise (Zürich — New York: Hildesheim, Georg Olms
Verlag, 2013).
Confira a entrevista.
O que é o maquiavelismo e o hipermaquiavelismo?
António Bento - Uma resposta adequada e, tanto quanto possível,
exaustiva, à sua pergunta — na aparência tão genuína e simples — mobilizaria
certamente uma biblioteca inteira, não uma biblioteca qualquer, nem sequer uma
biblioteca especializada em estudos sobre Maquiavel, mas uma “biblioteca
total”, digamos que à semelhança daquela “Biblioteca de Babel” concebida por
Jorge Luis Borges! Tal a “reputação” e tamanhas as lendas associadas ao nome
Maquiavel!
Mas, enfim, para tentar responder concretamente à
sua pergunta, começaria talvez por evocar um estudo de Gilles Deleuze sobre a
repercussão dos nomes de Sade e de Masoch na história da literatura médica, os
quais, constituindo prodigiosos exemplos de eficácia clínica, estão na origem
da designação, como se sabe, de duas perversões sexuais de base: o “sadismo” e
o “masoquismo”. Aceitando provisoriamente e com reservas esta analogia, pode-se
perguntar se Maquiavel não será também um daqueles grandes “doentes” típicos
que emprestam às doenças (o “maquiavelismo”; o “hipermaquiavelismo”) os seus
nomes próprios? Mas talvez devamos começar por modificar ligeiramente a
pergunta, de modo a obtermos outro tipo de respostas, respostas que,
precisamente, digam respeito a outro tipo de perguntas: não serão antes os
“médicos” que, a posteriori e analisando de perto a “doença”, agrupam sintomas
até então dissociados (batizando-os, desbatizando-os e rebatizando-os) compondo
um “quadro clínico” novo e original à custa de um sortilégio extraordinário e
de um estranho poder de conotar signos (signos políticos, no caso de Maquiavel)
que um determinado nome próprio possui e liberta?
Maquiavelismos
A verdade é que os termos “maquiavelismo” e
“maquiavélico” se impuseram no imaginário político moderno europeu como
sinônimos de uma ação política baseada na fraude, na violência e na impiedade.
Como quer que seja, “maquiavelismos” há e haverá, com toda a certeza, sempre
muitos e diversos, de acordo, aliás, com as épocas da história e com os
combates políticos que lhes dão forma. Já no século XVII, naquela que foi, sem
dúvida, a primeira grande cruzada moralista — simultaneamente contra reformista
e protestante — contra os escritos e ensinamentos políticos de Maquiavel,
existiram decerto o “maquiavelismo” de Maquiavel, o “maquiavelismo” dos
“maquiavelistas” e o “maquiavelismo” dos “antimaquiavelistas”. E os “antimaquiavelismos”
serão tantos quantos os potenciais inimigos — coevos, modernos, contemporâneos
— de Maquiavel: anglicanismo ou protestantismo, jesuitismo ou galicanismo,
tacitismo, cepticismo, fideísmo, ateísmo, etc. Cada uma destas seitas ou
ideologias acusou as outras ou foi por elas acusada de “maquiavelismo”. A
verdade é que, como observou algures Thomas Berns, “nenhuma se reivindicou do
maquiavelismo, de tal modo que este inimigo comum e fugidio a que Maquiavel deu
o seu nome parece ser o grande ausente do debate”.
Pierre Bayle, por exemplo, na entrada “Maquiavel”
do seu Dictionnaire historique et critique (1697), faz-se portador da opinião
reinante segundo a qual o ensino do secretário florentino possui um carácter
“cínico”, “irreligioso”, “blasfemo”, “demoníaco”: “O público está persuadido de
que o maquiavelismo e a arte de reinar tiranicamente são termos de igual
significação”. Um século mais tarde, Toussaint Guiraudet escrevia o seguinte
num prefácio às Œuvres de Machiavel: “O nome de Maquiavel parece consagrado em
todos os idiomas a recordar ou mesmo a expressar todos os desvios e as
prevaricações da política mais astuciosa e mais criminosa. A maior parte de
todos os que o pronunciaram, como a todas as outras palavras de uma língua,
antes de saberem o que ele significa e de onde deriva… deve ter acreditado que
era o nome de um tirano”. Federico Chabod, por exemplo, para me deter apenas em
um interessante estudioso contemporâneo da obra de Maquiavel, observa, a justo
título, o modo como todos nós, mesmo antes de havermos lido — quanto mais
estudado — as obras de Maquiavel, usamos, sem hesitações de qualquer espécie, o
termo “maquiavelismo”: “É como se Maquiavel tivesse criado não a teoria da
política, mas a própria política, sem mais; como se, antes dele, os monarcas
tivessem sido todos eles candura, bondade e boa-fé, e apenas de Maquiavel
houvessem aprendido a reger o Estado com outros meios que não o
pai-nosso”.
A política como “o mal”
Em poucas palavras, tamanho é, enfim, o poder de
sugestão da expressão “maquiavelismo”, que houve mesmo quem pretendesse traçar
uma história do “maquiavelismo anterior a Maquiavel” (cf. Maurice Joly ,
Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, 1864) ou de um “maquiavelismo
perpétuo e universal”, dando assim razão aos que pensam que o “mito do
maquiavelismo” traz consigo não apenas uma identificação da política com a
perversidade, mas a acusação implícita de que a perversidade política absorve e
resume em si mesma toda e qualquer forma de perversidade que o homem possa
conhecer ou praticar. Por exemplo, do ponto de vista político que enforma a
visão dos funcionários católicos governamentais da Contrarreforma, o
“maquiavelismo”, depositário de toda a sorte de iniquidades e malfeitorias, era
a encarnação da imoralidade em política, uma encarnação de tal maneira forte que,
como refere Claude Lefort, “sugere a identificação da política com a
imoralidade”. Mais: tendo em conta que a malignidade e a “tentação” do
“maquiavelismo” é a malignidade e a “tentação” de obter o sucesso e o poder por
meio do mal, “o maquiavelismo é o nome dado à política na medida em que ela é o
mal” (Claude Lefort).
Ora, creio que o mesmo se poderá dizer dos dias de
hoje, sobretudo se tivermos em conta, como observa Carl Schmitt no seu opúsculo
O Conceito do Político, que “todos os conceitos, representações e palavras
políticas têm um sentido polêmico; visam a um antagonismo concreto e estão
ligados a uma situação concreta cuja última consequência é um agrupamento
amigo-inimigo, transformando-se em abstrações vazias e fantasmagóricas quando
esta situação deixa de vigorar”. Sob esta perspectiva, acusar um determinado
inimigo político de “maquiavelismo” e estigmatizar publicamente os seus atos
como “maquiavélicos” constitui, no fundo, uma simples arma de arremesso
político.
Jesuitismo e maquiavelismo
A propósito do caráter semanticamente flutuante e
politicamente estratégico dos termos “maquiavelismo” e “maquiavélico”, e para,
finalmente, terminar de responder a uma pergunta cuja resposta é praticamente
interminável, recordo as palavras certeiras de Claude Lefort na sua obra Le
travail de l’œuvre Machiavel: “Enquanto na França o maquiavelismo é
principalmente o símbolo de uma política de intolerância, cujo objetivo é
sujeitar a religião ao serviço do governo, na Espanha ele associa-se aos
partidários da tolerância, àqueles que são acusados de arruinar a unidade
religiosa, com o fim único de assegurar o poder do Estado. Enquanto aos olhos
dos jesuítas o maquiavelismo é o breviário da Reforma, para os protestantes ele
confunde-se com o jesuitismo”.
Não por acaso, a assimilação do “jesuitismo” ao
“maquiavelismo” tomou, num país católico como Portugal, foros de cidadania na
formulação de um autor como António Sérgio, o qual, opositor da ditadura de António
Oliveira Salazar , equacionou do seguinte modo ambos os «ismos» nos seus
Diálogos de Doutrina Democrática (1933): “Um dia, num palácio dos arredores da
cidade de Milão, a princesa italiana que nele morava mostrou-me um crucifixo de
lavor artístico, obra italiana do Renascimento. Admirei. ‘Agora’, disse-me a
dona, ‘puxe pela parte superior da cruz.’ Puxei. Cedeu. Brilhou uma lâmina. Era
um punhal com a forma exterior de um crucifixo. Aí tens a imagem da perversão
da mente a que eu dou o nome de ‘jesuitismo’. A religião exterior e o mal
interior; a política a destruir a ética; a ordem aparente a corromper o
espírito, a coerência íntima; a verdade sacrificada a um efeito
sensível”.
Em que medida esses conceitos transcendem ou mesmo
extrapolam as ideias propostas por Maquiavel?
António Bento - Creio que a resposta anterior deixa já entrever as
chaves para a compreensão do que alguns comentadores chamam de “o enigma
Maquiavel”. Em todo o caso, talvez importe sublinhar, uma vez mais, o carácter
semanticamente flutuante e politicamente estratégico dos conceitos em questão.
No fundo, o que eles significam é algo de muito simples, mas tremendamente
efetivo, a saber: que a influência política de Maquiavel, a despeito de um
desprezo e de um ódio imensos, jamais deixou de se sentir. Pelo contrário,
antes ganhou mais e mais terreno, e, como de certa maneira não poderia deixar
de acontecer, preferencialmente no próprio seio daqueles que se declaravam seus
inimigos políticos. Com efeito, foram principalmente os seus inimigos políticos
mais resolutos e radicais que contribuíram para fortalecer o interesse na sua
pessoa e desencadear uma obsessiva curiosidade pela sua obra, ao ponto de a
abominação e a diabolização do nome Maquiavel ser acompanhada por um estranho
sortilégio que, não raras vezes, se traduziu numa admiração e fascínio
compulsivos.
Ernst Cassirer, na sua obra O Mito do Estado,
observou muito bem este aspecto primordial do significado e da repercussão
política da obra de Maquiavel. Em suma, a reputação e a influência de Maquiavel
atingiram ao longo dos séculos um ponto tal que se foi tornando cada vez mais
difícil encontrar qualquer diferença significativa entre os admiradores e
seguidores de Maquiavel e os seus detratores e inimigos. Pode, aliás,
admitir-se que é na paradoxal aliança de uns e de outros que hão de ser
buscadas as razões remotas da crescente fortuna do “maquiavelismo” e do
“hipermaquiavelismo” no pensamento político moderno e contemporâneo. O
“maquiavelismo”, enfim, sobrevivera a Maquiavel. E se Maquiavel morrera, os
fantasmas associados à sua teoria política haveriam de regressar abruptamente
em todas as suas novas reencarnações. Exemplo do que acabo de referir é o modo
como, já em 1589, Christopher Marlowe, no prólogo de O Judeu de Malta,
apresenta o secretário florentino:
«Apesar de o mundo pensar que Maquiavel morreu,
Foi tão-só a sua alma que voou para além dos Alpes;
E agora, que o Guise morreu, veio de França,
Para ver estas terras, e folgar com os amigos.
Para alguns o meu nome é, se calhar, odioso,
Mas, vós, os que me amais, livrai-me das suas
línguas;
E fazei-lhes saber que eu sou Maquiavel,
Que não julgo os homens, nem, portanto, as palavras
que estes dizem.
Muito me espantam aqueles que tanto me odeiam.
E se alguns falam abertamente contra os meus
livros,
Hão de, ainda assim, ler-me, e desse modo chegar
À cadeira de Pedro; e mesmo quando me põem de
parte,
São envenenados pelos imitadores que não me
largam.»
Carl Schmitt compreendia Maquiavel como
alguém mais do que apenas o autor de O Príncipe. Tendo esse horizonte em vista,
que chaves de leitura devem ser tomadas em consideração a partir das outras
obras desse pensador, como Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio?
António Bento - O problema não é pacífico, nem isento de certas
paixões, digamos assim, hermenêuticas. Muito antes de Carl Schmitt, outros
autores, não menos importantes que o jurista alemão, insistiram no duplo
aspecto do ensinamento político de Maquiavel, consoante este é deduzido de O
Príncipe ou de Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (ou ainda de
Histórias Florentinas).
Afinal, bem vistas as coisas, não teria sido o
próprio Maquiavel — de acordo com uma tradição republicana, liberal, romântica,
e até marxista, de interpretação do seu pensamento — muito pouco
“maquiavélico”, um daqueles instrutores de príncipes que conhecem o jogo
político do Estado e que integralmente o ensinam, ao passo que o
“maquiavelismo” vulgar, esse sim, ensinaria a fazer outra coisa? Tal é já a
opinião do prudente Espinosa, para quem “talvez Maquiavel quisesse mostrar
quanto uma multidão livre deve ter medo de confiar a sua defesa a um só, o
qual, se não for vaidoso nem julgar que pode agradar a todos, tem de temer
revoltas todos os dias, sendo por isso obrigado a precaver-se e a atraiçoar a
multidão em vez de governá-la” (Tratado Político, V). Em idêntico sentido se pronunciou
Jean-Jacques Rousseau: “Fazendo crer que dava lições aos reis, dava-as bem
grandes aos povos. O Príncipe, de Maquiavel, é o livro dos republicanos”.
Ademais, numa elucidativa nota que acrescentou à versão do Contrato social de
1772, observa ainda Rousseau, a propósito de O Príncipe, de Maquiavel, o
seguinte: “Maquiavel era um homem honesto e um bom cidadão. Mas, atado à missão
dos Médicis, viu-se forçado, na opressão da sua pátria, a mascarar o seu amor à
liberdade. Já a escolha do seu execrável herói (César Bórgia) manifesta bem a
sua intenção secreta; e a oposição das máximas do seu livro O Príncipe às dos
seus Discursos sobre Tito Lívio e às da sua História de Florença demonstra que
este político profundo não teve até agora senão leitores superficiais ou
corrompidos. A corte de Roma proibiu severamente o seu livro, segundo penso; é
ela que ele mais claramente descreve”. Em pleno Iluminismo, numa época em que
uma afetada expressão pública de uma repugnância pela política fez a sua
escola, no artigo “Maquiavelismo” da Encyclopédie (t. IX, Neuchâtel, 1765, p.
793), Diderot dá, também ele, pouco mais ou menos, uma interpretação semelhante
de O Príncipe: “Quando Maquiavel escreveu o seu tratado do príncipe, é como se
ele tivesse dito aos seus concidadãos, lede bem esta obra. Se um dia aceitardes
um senhor, ele será tal como eu vo-lo pinto: eis o animal feroz ao qual vos
abandonareis”.
“Manual para gângsteres”
Quanto ao ódio que os seus contemporâneos
destilaram sobre Maquiavel, apresentara-o já Trajano Boccalini, na primeira
década de seiscentos, nos seguintes termos: “Os inimigos de Maquiavel
consideram-no homem digno de punição porque revelou como os príncipes governam
e, assim, instruiu o povo; ‘colocou dentes de cães nas ovelhas’, destruiu os
mitos do poder, o prestígio da autoridade, tornou mais difícil governar, porque
os governados podem saber a este respeito tanto quanto os governantes”.
Não foi, porém, esta benigna interpretação que os
autores da teoria política católica da Contrarreforma colheram nos escritos de
Maquiavel, nem a alegada admiração do secretário florentino pelos ideais
republicanos da Roma antiga magnificamente expressa nos Discorsi suscitou
alguma vez neles simpatia ou simplesmente respeito. Àquela visão benevolente
atrás referida, preferiram a visão mais comum e mais antiga de Maquiavel, uma
visão segundo a qual, e cito Isaiah Berlin, “Maquiavel é um homem inspirado
pelo Demônio, para arrastar os homens bons à perdição, o grande subversor, o
mestre do mal, le docteur de la scélératesse, o inspirador do Massacre de São
Bartolomeu, o modelo de Iago. É o ‘sanguinário Maquiavel’ das famosas
quatrocentas e tal referências da literatura isabelina. O seu nome acrescenta
um novo ingrediente à figura mais antiga do Old Nick (O Diabo). Para os
jesuítas, ele é ‘sócio do diabo nos crimes’, um escritor infame e um cético, e
O Príncipe é, nas palavras de Bertrand Russell, ‘um manual para gângsteres’”.
Para concluir, refiro apenas as palavras que um autor da estatura de Leo Strauss
consagra ao duplo ensino de Maquiavel (tirânico em O Príncipe; republicano nos
Discorsi): “Não escandalizaremos ninguém, apenas nos exporemos ao ridículo
amável ou em todo o caso inofensivo, se nos declaramos inclinados para a
opinião antiquada e simples segundo a qual Maquiavel era um mestre do mal”.
De que modo Maquiavel e Hobbes problematizam a
questão da natureza humana e do absolutismo? Como tais compreensões repercutem
na política ocidental?
António Bento - A questão do “absolutismo”, se tomarmos este
conceito no seu estrito significado histórico e político, só se põe a partir do
momento em que Jean Bodin, primeiro, e Thomas Hobbes, depois, definem e
formulam, cada um, evidentemente, à sua maneira, o conceito jurídico-político
de “soberania”. Creio que cometeríamos um anacronismo se porventura
começássemos a falar impropriamente de “soberania” e de “absolutismo” em
Maquiavel.
Quanto à questão da “natureza humana” ou
“antropologia política” de Maquiavel e de Hobbes, a proximidade entre ambos é
manifesta e indesmentível, pois as obras de um e de outro pressupõem o homem
como covarde, medroso, mau, egoísta, ingrato, violento, etc. Até certo ponto, e
de uma certa maneira, como um dia observou Carl Schmitt, podemos tomar todas as
teorias do Estado e todas as ideias políticas na sua correspondente
antropologia e classificá-las conforme elas, consciente ou inconscientemente,
pressuponham que o homem é “mau por natureza” ou “bom por natureza”. Na
verdade, a elucidação desta questão é fundamental para o esclarecimento do
conceito moderno de “direito natural”, tal como, precisamente, Thomas Hobbes o
formulou. Não por acaso, o pai da filosofia política moderna, Maquiavel,
considera que “quem pretenda fundar um Estado e dar-lhe leis deve
antecipadamente pressupor os homens como maus e sempre prontos a mostrar a sua
malvadez logo que para tal se lhes ofereça uma ocasião”. A verdade é que, um
século e meio depois de Maquiavel ter proferido esta sentença, é ainda sobre a
demonstração deste enunciado relativo à natureza do homem que Thomas Hobbes
funda a necessidade do seu Leviathan (metáfora bíblica para o Estado moderno).
Medo “natural” e direito “racional”
Sabe-se como é de uma determinada articulação entre
o medo da morte violenta (a paixão mais poderosa) e o direito à conservação da
vida (o direito mais sagrado) que Thomas Hobbes deduz o seu Leviathan. Sabe-se
também como uma boa parte — a grande parte — da tradição da filosofia política
moderna provém da racionalização deste “medo” e da naturalização deste
“direito”. A um medo “natural” racionalizado, faz ela corresponder um direito
“racional” naturalizado. O que isto imediatamente significa é que a economia
política da vida moderna se define por um cálculo racional de riscos e de
benefícios no qual o “medo” é disposto como o fundamento prático e a garantia
especulativa do “direito”. Mais: a naturalização do direito à conservação da
vida só pode ter como corolário o aumento do medo da morte violenta e a
consequente existência de um «direito» que deve modernamente apresentar-se — e
justificar-se — como uma segurança contra o medo. Uma segurança “mítica”, em
todo o caso, e, no sentido que Walter Benjamin atribui ao que ele chama
“violência mítica” do direito, também uma segurança “sagrada”. Foi neste ponto
que Thomas Hobbes nos colocou e do qual ainda hoje permanecemos cativos: a
política concebida como fábrica de segurança e o direito como apólice universal
contra o medo. De acordo com o que antes ficou dito, decorre, portanto, da
própria lógica jurídica hobbesiana, que quanto mais “conservável” é a vida de
que a política soberana se ocupa, tanto mais essa vida é potencialmente
“sacrificável”.
Poder imunitário
A moderna e sumamente hobbesiana vontade de
segurança, com a sua lógica imunitária de prevenção e cura, faz periclitar a
própria vida ao expulsar ilusoriamente a morte do âmbito da vida. Mas esta
potência de contradição ínsita ao princípio imunitário de conservação da vida
revela-se ainda de outra forma no pensamento de Thomas Hobbes. A verdade é que
a vontade de segurança, a imunização (sempre precária) à morte, a promessa,
enfim, de proteção da vida que o poder soberano moderno faz aos seus súditos,
contém em si mesma, e de maneira constitutiva, a possibilidade (dir-se-ia,
antes, a necessidade) inversa: o poder absoluto de dar a morte. O que isto
significa é que não apenas o “estado de natureza” sobrevive no “estado
político”, como nele se intensifica sob o seu modo mais próprio, aí adquirindo
o seu cunho tipicamente moderno.
Com efeito, no nexo constitutivo entre a política e
a vida que define a biopolítica moderna, a política (em termos hobbesianos, a
proteção imunitária proporcionada pelo “estado civil”) é a continuação da
guerra (do risco e do perigo do “estado natural”) por outros meios. Assim,
expulso, por um artifício da razão, para o exterior do “pacto”, este poder de
dar a morte irrompe no interior do próprio “pacto”, como a sua condição de
possibilidade. Em termos hobbesianos, é este ponto de intersecção entre o
“pactum societatis” e o “pactum subjectionis” que faz da vida individual de
cada súdito simultaneamente um sujeito da “soberania” e um sujeito à “soberania”.
Com efeito, no seu afã de colocar a morte ao serviço da esfera mítica do
direito, o poder soberano institui um contrato com os súditos ao mesmo tempo
que lhes lança uma ordem: “obedece se queres ver a tua vida protegida”; “eu lhe
dou a vida, mas posso, a qualquer momento, retirá-la”. O poder soberano
garante, pois, a proteção da vida apenas com a permanente intrusão da ameaça de
morte. Numa perspectiva cínica (ou talvez apenas realista), dir-se-ia que não
se trata aqui senão da contrapartida política (que é também o seu perigoso
reverso) que assiste o estabelecimento do direito natural moderno, cuja
positivização, pode-se dizer, Hobbes inaugurou. Trata-se, em todo o caso, como
refere Thomas Hobbes no final do Leviathan, do cumprimento inviolável de uma
“mutual relation between protection and obedience”. Carl Schmitt formulou um
dia esta permanente conexão entre proteção e obediência que caracteriza a
doutrina do Estado de Thomas Hobbes do seguinte modo: “O protego ergo obligo é
o cogito ergo sum do Estado”.
Paradigma da imunidade
Mas as consequências profundas do pensamento
político de Thomas Hobbes repercutiram de modo assaz veemente e surpreendente
na nossa contemporaneidade. De acordo com Roberto Esposito, o autor que melhor
refletiu sobre as consequências do paradigma securitário hobbesiano nas
sociedades contemporâneas, a política conhece cada vez mais, e hoje,
porventura, mais do que nunca, apenas um “paradigma imunitário”. De acordo com
a interessante leitura que Esposito faz do pensamento político de Thomas
Hobbes, se os conceitos modernos de “soberania”, “propriedade” e “liberdade”
tendem, num determinado momento da sua história, a confluir e a reduzir-se à
“segurança” do sujeito que é seu titular, isso é a inevitável consequência do
modo imunitário como a modernidade pensa a política. Segundo Esposito, o que
ele designa como “paradigma da imunidade” resulta do duplo processo cruzado de
politização da vida e de biologização da política, o qual reúne num único
horizonte de sentido as duas dimensões do conceito de “imunidade”: a dimensão
jurídico-política e a dimensão biológica. Ainda, segundo este autor, uma vez
consumada a completa sobreposição do léxico político e do léxico médico
modernos, “a imunização torna-se não apenas no instrumento, mas também na forma
da civilização ocidental”.
Finalizando: que um paradigma político imunitário
governa hoje de maneira transversal e capilar as relações humanas globais no
seu conjunto, comprova-o o fato de a modulação afetiva e o controle da
intensidade do medo se terem tornado um assunto político de interesse público.
Cada vez mais, a “sociedade do risco” em que nos movemos é permanentemente
ameaçada pelo pânico ante toda a espécie de potenciais catástrofes (ambientais,
ecológicas, epidêmicas, terroristas, políticas, econômicas, etc.) que devem ser
cientificamente prevenidas. Como observa Frédéric Neyrat: “A biopolítica
contemporânea é imediatamente uma imunopolítica de tendência paranoica, que
desconfia de fronteiras que se tornam cada vez mais indelimitáveis. […] É, com
efeito, impossível compreender os objetivos proclamados da biopolítica sem
interrogar a sua ‘outra cena’, o seu fantasma de imunização absoluta, de
proteção total”.
Com efeito, capturada numa dialética aporética
entre o risco e a proteção, um risco que requer proteção tanto quanto a própria
proteção produz, por sua vez, risco, a política moderna tende a criar, por um
excesso neurótico de prevenção, autoimunidade, instituindo assim o perigo de
morte para a própria espécie. Desse modo, a prevenção — e, no limite, a
eliminação — da doença, pode revelar-se mais perigosa do que a própria doença.
A consequência disso é que a vida política ocidental entra num curto-circuito
permanente. E este crescente interesse pela ideia de regulação do risco,
consequência, muitas vezes, de um pânico politicamente administrado, deu origem
ao estabelecimento da categoria do “precautionary principle” (ou
“Vorsorgeprinzip” no original), a que eu chamo princípio de absolutização da
imunidade política. Princípio da irresponsabilidade.
IHU On-Line - Em que sentido as constatações
políticas de Maquiavel ecoam nas concepções políticas de Nietzsche, como na
grande política, na vontade de poder e na transvaloração dos valores?
António Bento - Creio, sinceramente, que em absolutamente nenhum
sentido. Efetivamente, não creio que se possa, e menos ainda deva, misturar o
sol materialista de Florença com o nevoeiro metafísico de Bayreuth… Isto,
claro, ressalvando embora toda a genuína admiração de Nietzsche por Maquiavel:
“A minha recriação, a minha predileção, a minha cura de todo o platonismo foi
sempre Tucídides. Tucídides e, talvez, O Príncipe, de Maquiavel, me são mais
afins pela determinação incondicional de não se deixar iludir em nada e de ver
a razão na realidade — não na ‘razão’, e menos ainda na ‘moral’…”, confessa o
“cabeça-de-dinamite” (Ernst Jünger) em O Crepúsculo dos Ídolos.
Nesse sentido, como o “estatuto da mentira na
Filosofia Política” pode ser compreendido se pensarmos a partir da perspectiva
de Maquiavel e Nietzsche?
António Bento - São, com certeza, perspectivas distintas as de
Maquiavel e de Nietzsche em torno da “mentira”, em geral, e, sobretudo, a
respeito da “mentira política”, em particular. Contudo, há que sublinhar
igualmente a existência de afinidades e de semelhanças. No caso de Nietzsche
estamos, por um lado, perante uma teoria artística da mentira, que faz do poder
do falso uma magnificação do “mundo enquanto erro”, transformando a vontade de
enganar num ideal estético superior e, por outro, diante de uma teoria
pragmática da linguagem.
Num ensaio de 1873, intitulado Acerca da verdade e
da mentira no sentido extramoral, Friedrich Nietzsche elabora uma teoria da
verdade que está muito próxima de algumas modernas teorias pragmáticas da
linguagem. Em primeiro lugar, a verdade é aí valorizada porque é útil para a
comunidade, boa para a sociedade, e não porque corresponda a um efetivo
conhecimento das coisas. Em segundo lugar, a linguagem, enquanto instrumento
privilegiado do conhecimento, é fundamentalmente uma estrutura de dissimulação,
um mecanismo de apropriação e de captura da realidade, e não uma espécie de
espelho da realidade. O ponto de partida desta concepção nietzschiana da
linguagem é que a verdade não é valorizada por interesses, em primeiro lugar,
científicos, ou éticos, em geral, mas por sujeitos interessados na
sobrevivência e numa vida comunitária, social, estável. A verdade não é,
portanto, dissociável da noção de verdade como “valor”, a qual interessa mais
ao instinto de preservação (“Erhaltungstrieb”) e menos a uma espécie de
instinto para a verdade ou de inclinação natural do homem para a verdade
(“Wahrheitstrieb”). Na Genealogia da Moral (III, 24) Nietzsche observa: “A
verdade tem sido sempre postulada como essência, como Deus, como instância
suprema [...] Mas a vontade de verdade tem necessidade de uma crítica.
Defina-se assim a nossa tarefa — é necessário de uma vez por todas pôr em
questão o valor da verdade”. O problema que Nietzsche aqui apresenta é muito simples:
no seu entender, os filósofos clássicos nunca puseram realmente em questão o
valor da verdade e muito menos esclareceram as razões para que o homem se
submetesse à verdade. Esqueceram-se, afinal, pensa Nietzsche, de fazer uma
pergunta simples, uma pergunta, porém, incontornável: Quem procura a verdade?
Quer dizer: o que é que quer aquele que procura a verdade? Qual é o seu tipo?
Qual a sua vontade de poder?
Verdade e convenção
Convém sublinhar que não se trata, para Nietzsche,
de pôr em dúvida a vontade de verdade, embora ele nos venha lembrar que os
homens, de fato, não amam, naturalmente, a verdade, e que muitas vezes, mais do
que os seus erros, são os seus interesses e a sua estupidez que os separam da
verdade. Com muita seriedade, Nietzsche aceita pensar este problema
colocando-se, de boa-fé, no próprio terreno em que o problema é posto: no
terreno moral. Assim, Nietzsche procura antes pensar o que a verdade pode
significar como conceito, que tipo de forças e que espécie de poderes se
apropriam dela. Por outro lado, em Humano, Demasiado Humano (§ 54), Nietzsche
afirma que o mentiroso não é excluído da comunidade pelo fato de dizer
mentiras, mas porque essas mentiras são ilusões consideradas perniciosas para a
paz ou para o contrato social: “Por que dizem os homens, a maior parte das
vezes e na vida de todos os dias, a verdade? Não é certamente porque um Deus
proibiu a mentira. Mas sim, primeiramente: porque dizer a verdade é mais fácil,
dado que a mentira exige invenção, dissimulação e memória. E é ainda: porque em
circunstâncias simples, é vantajoso falar francamente: quero isto, fiz aquilo,
e assim sucessivamente; portanto, porque o caminho da coação e da autoridade é
mais seguro que o do ardil. Mas, por pouco complicadas que tenham sido as
circunstâncias domésticas em que uma criança tenha sido educada, ela serve-se
naturalmente da mentira e diz sempre, involuntariamente, tudo o que serve aos
seus próprios interesses: a noção da verdade, a repugnância pela mentira em si,
lhe são totalmente estranhas e inacessíveis, e a criança mente com toda a
inocência”. “Na medida em que o indivíduo se quer conservar relativamente aos
outros indivíduos”, diz-nos Nietzsche, “este, na maior parte das vezes, utiliza
o intelecto num estado natural das coisas, somente para a dissimulação; mas,
como o homem quer existir tanto por necessidade como por tédio, socialmente e
por rebanho, precisa fazer a paz e aspira a que desapareça do seu mundo o mais
brutal bellum omnium contra omnes. Esta paz traz consigo algo que se parece com
o primeiro passo para a obtenção daquele enigmático impulso para a
verdade”.
Podemos, enfim, dizer que o pensamento de Nietzsche
concebe a valorização da verdade como uma subordinação da verdade à convenção.
O indivíduo que mente é o que transgride convenções que são importantes para a
manutenção da paz social e é, também, por essa razão que a antinomia moral
verdade/mentira — que é anterior à antinomia epistemológica verdade/falsidade —
se impôs definitivamente. A primeira oposição, de origem moral, determinou a
segunda, de cariz epistemológico.
Imperativo
Quanto a Maquiavel, o problema da mentira surge
associado à necessidade de dissimulação/simulação intrínseca ao político e, por
vezes, à estritamente necessária inobservância da palavra dada. Com efeito, no
capítulo XVIII de O Príncipe, o secretário florentino observa o seguinte: “Quão
louvável seja num príncipe o manter a palavra dada e viver com integridade e
não com astúcia, qualquer um o entende. No entanto, vê-se pela experiência do
nosso tempo terem feito grandes coisas aqueles príncipes que tiveram em pouca
conta a palavra dada e que souberam, com a astúcia, dar a volta aos cérebros
dos homens; e no fim superaram aqueles que se fundaram na sinceridade. […] Não
pode, portanto, um senhor prudente, nem deve, observar a palavra dada quando
tal observância se volta contra ele e se extinguiram os motivos que o fizeram
prometer. E, se os homens fossem todos bons, este preceito não seria bom. Mas,
porque eles são ruins e não a observariam para contigo, tu também não a tens de
observar para com eles, nem faltarão jamais a um príncipe motivos legítimos
para mascarar a inobservância”.
Tal como em O Príncipe, também nas Histórias
Florentinas (III, 5) Maquiavel justifica o perjúrio e a mentira pelo imperativo
pragmático da necessidade e utilidade: “E, como em todos o temor de Deus e a
religião desapareceram, o juramento e a palavra empenhada são respeitados só
quando podem tornar-se úteis, e os homens disto se valem não para cumprir, mas
como meio de melhor enganar; e quanto mais fácil e seguramente o engano é
conseguido, mais louvores e glória adquirem: por isso os homens nocivos são
louvados como laboriosos, e os bons, como tolos, são ralhados”.
Mutação na história da mentira
Finalmente, há que referir, ainda que
necessariamente de forma muito breve e alusiva, às reflexões de Hannah Arendt,
uma admiradora confessa do pensamento de Maquiavel, sobre a mentira política
moderna. Não foi há muito tempo que a autora de Truth and Politics (1967)
chamou a nossa atenção para o carácter ativo e afirmativo da mentira, para o
fato de “as mentiras, desde que utilizadas como substitutos de meios mais
violentos, poderem ser consideradas como instrumentos relativamente inofensivos
no arsenal da ação política”. Que a política e a verdade sempre estiveram em
más relações e que a boa-fé jamais foi incluída na classe das virtudes
políticas, é algo bem conhecido e mesmo um lugar comum. Com efeito, o segredo,
os arcana imperii, o engano, a falsificação deliberada e a mentira descarada
são usadas como meios legítimos para alcançar fins políticos desde os
primórdios da história documentada. Não por acaso, Hannah Arendt lembra-o
constantemente: “As mentiras foram sempre consideradas necessárias e
justificáveis, não apenas à profissão do político e do demagogo, mas também à
do homem de Estado. Por que será assim? O que é que isto representa, por um
lado, para a natureza e a dignidade da esfera política, e, por outro, para a
natureza e a dignidade do domínio da verdade e da boa-fé?”.
Um dos pontos interessantes da argumentação de
Hannah Arendt neste ensaio prende-se com o reconhecimento da existência de uma
transformação ou mutação na história da mentira. Uma mutação simultaneamente na
história do conceito de mentira e na história da própria prática do mentir.
Segundo Arendt, a mentira teria modernamente atingido o seu limite absoluto,
tornando-se agora “completa e definitiva”. Ao contrário de Oscar Wilde, que no
seu O Declínio da Mentira diagnostica uma agonia da mentira e lamenta que os
políticos, os advogados, e mesmo os jornalistas, saibam cada vez menos mentir e
cultivem cada vez menos a mentira, Arendt considera preocupante o crescimento
hiperbólico da mentira na arena política moderna: “A possibilidade da mentira
completa e definitiva, ainda desconhecida nas épocas anteriores, é o perigo que
decorre da moderna manipulação dos fatos. Mesmo no mundo livre, onde o governo
não monopolizou o poder de decidir e de dizer o que é ou não é da esfera da
fatualidade, gigantescas organizações de interesses generalizaram uma espécie
de mentalidade de raison d’État, outrora confinada ao domínio dos negócios
estrangeiros, e, nos seus piores excessos, às situações de perigo iminente e
atual”.
Neste ensaio, Arendt esboça a problemática da
efetividade e da performatividade de uma mentira cuja estrutura e acontecimento
estariam ligados, de maneira essencial, ao conceito de “ação”, e, mais
precisamente, ao conceito de “ação política”. É este um motivo presente logo
nas primeiras páginas de Lying in Politics. Reflections on the Pentagon Papers:
“Uma característica da ação humana é que ela começa sempre algo novo, o que não
significa que seja sempre permitido começar ab ovo, criar ex nihilo. De modo a
arranjar espaço para a nossa própria ação, algo que já aí estava antes deve ser
removido ou destruído, e deste modo as coisas mudam e deixam de ser o que eram
antes. Essa mudança teria sido impossível se não pudéssemos remover-nos
mentalmente do local onde fisicamente estamos e imaginar que as coisas poderiam
ser muito diferentes do que de fato são. Por outras palavras, a negação
deliberada da verdade fatual — a capacidade para mentir — e a faculdade de
mudar os fatos — a capacidade para agir — estão interligadas. Elas devem a sua
existência à mesma fonte: a imaginação”.
Verdade dos fatos e opinião
Finalmente, Hannah Arendt lembra-nos que o
mentiroso é, por excelência, um homem de ação. Entre mentir em política e agir
em política, entre manifestar a sua liberdade pela ação, transformar os fatos e
antecipar o futuro, há como que uma afinidade essencial. A imaginação: eis,
segundo Arendt, a raiz comum à “capacidade de mentir” e à “capacidade de agir”.
Capacidade de produzir a imagem. Pois “imagem” é justamente a palavra-chave ou
o conceito maior de todas as análises consagradas à mentira política do nosso
tempo. Sob esta perspectiva, a mentira é o futuro, podemos arriscar dizê-lo,
sem, contudo, trair a intenção de Arendt neste contexto. Dizer a verdade é,
pelo contrário, dizer o que é ou terá sido, o que será sempre preferir o
passado. Hannah Arendt fala, pois, de uma afinidade indesmentível da mentira
com a ação, com a mudança do mundo — em suma, com a política. “Ao contrário
daquele que diz a verdade — diz ela —, o mentiroso não tem necessidade desses
arranjos duvidosos para aparecer na cena política, afirma aquilo que não é,
porque deseja que as coisas sejam diferentes daquilo que são, isto é, ele quer
mudar o mundo. […] Por outras palavras, a nossa capacidade para mentir — mas
não necessariamente a nossa capacidade para dizer a verdade — pertence aos
poucos dados óbvios e demonstráveis que confirmam a existência da liberdade
humana”.
Tudo se passa como se não pudesse haver história em
geral, e história política em particular, sem esta ação, sem esta liberdade que
a possibilidade de mentir oferece. Hannah Arendt julga, contudo, saber que os
fatos se afirmam a si próprios pela sua inflexibilidade; que, se os fatos são
manipuláveis, uma tal manipulabilidade está paradoxalmente ligada à grande
resistência que eles oferecem à distorção, pois os fatos seriam portadores
dessa irreversibilidade que constitui, para ela, a marca distintiva de toda a
ação humana. Com efeito, Hannah Arendt está profundamente convencida de que o
peso e a estabilidade dos fatos — fatos que, por pertencerem ao passado,
cresceram até uma dimensão que se pôs fora do nosso alcance — jamais poderão
ser substituídos por um artifício produzido pelo poder. Assim, que a linha
separadora entre a verdade dos fatos e a opinião seja cada vez mais tênue, isso
se explica, segundo Arendt, pelas numerosas máscaras que a mentira, como forma
de ação, pode assumir. Mas a verdade — julga Arendt — será sempre estabilidade
e irreversibilidade e sobreviverá indefinidamente às mentiras, às ficções e às
imagens. Por conseguinte, caso a verdade dos fatos fosse um dia consistente e
totalmente substituída pelas mentiras, não seriam as mentiras que passariam a
ser aceitas como verdade, nem seria a verdade que passaria a ser difamada como
mentira, seria antes o sentido pelo qual nos orientamos no mundo real que
ficaria definitivamente destruído. Este o medo de Hannah Arendt.
Foi apenas no século XIX que se proferiu de modo
veemente o vaticínio da morte de Deus, através do último homem que Nietzsche
assenta na praça do mercado. Contudo, as bases desse deicídio já vinham sendo
construídas antes do filósofo alemão. Nesse sentido, é correto compreender
Maquiavel como um dos pilares não só do laicismo, mas de um fenômeno ainda mais
profundo como o niilismo?
António Bento - Tem-se abusado em demasia dos conceitos de
“laicismo”, “secularização”, “niilismo”… Não posso agora entrar na sua
discussão, mas recordo que num um texto escrito nos anos 40 do século XX, intitulado
O fim do maquiavelismo, Jacques Maritain , reatualizando sob a forma de um
tolerante humanismo cristão os velhos argumentos dos autores católicos da
Contrarreforma contra Maquiavel, insiste na “perversidade” do secretário
florentino ao sublinhar que ele ensinou os homens não apenas a fazer o mal, mas
a fazê-lo de consciência tranquila: “O que era simples fato, com toda a
fraqueza e inconsistência que, mesmo no mal, é própria das coisas acidentais e
contingentes, depois de Maquiavel ficou sendo direito, com toda a firmeza e
solidez próprias das coisas necessárias […]. Esta é a perversão maquiavélica da
política, que emerge do fato da “tomada de consciência” maquiavélica do
comportamento político médio da humanidade. A responsabilidade histórica de Maquiavel
é a de ter aceitado, reconhecido e adotado como regra o fato da imoralidade
política e de ter declarado que a boa política, a política conforme sua
natureza e seus autênticos fins, é, por essência, uma política não moral”. Mais
próximo de nós no tempo, um autor da envergadura de Leo Strauss chama a atenção
para o caráter violentamente anticristão da doutrina de Maquiavel, para a sua
moralidade diabólica e sem escrúpulos. Maquiavel teria sido um ateu consciente
empenhado em subverter e destruir o cristianismo. Maquiavel teria sido o
primeiro filósofo político moderno, alguém que, tendo iniciado a revolução
contra a tradição do pensamento político ocidental, iniciaria também o declínio
da própria civilização ocidental. Tudo o que agora posso laconicamente dizer —
sem, contudo, justificar a minha posição — é que esta não é, de todo, a minha
opinião.
O que o “Príncipe” moderno deveria aprender com a
obra do pensador florentino?
António Bento - Para que possamos responder a esta pergunta é preciso
que saibamos exatamente a que ponto o “Estado de direito” hodierno se afastou
realmente de Maquiavel. É necessário que avaliemos primeiro, e
escrupulosamente, o que nos custa esse afastamento, o que pagamos, enfim, por
ele. É necessário, por isso, que saibamos até onde, de maneira talvez
insidiosa, Maquiavel se aproximou de nós e do nosso “Estado de direito”. É,
pois, necessário que o próprio “Estado de direito” apure o que há ainda de
maquiaveliano naquilo que lhe permite pensar-se e definir-se contra Maquiavel.
Por fim, é necessário ainda que se avalie em que medida o protesto moral do
“Estado de direito” contra Maquiavel não será talvez ainda uma armadilha que o
próprio Maquiavel lhe estendeu — uma armadilha de onde ele, Maquiavel,
maliciosamente o espreita e observa.
Na verdade, se hoje o “Estado de direito” se
confronta com a sua própria imagem no espelho político de Maquiavel, não é,
sobretudo, porque procure saber quais os pressupostos do “maquiavelismo” que
nele — sob formas novas, é verdade — se mantêm presentes. Assim, submeter
Maquiavel e o “maquiavelismo” ao ponto de vista da nossa atualidade política
não significa apenas uma mera contabilidade da herança que o presente recebe do
passado; antes implica, e de modo decisivo, uma rigorosa avaliação do
significado da brecha que o ponto de vista do presente abre entre o passado e a
sua própria autointerpretação.
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