terça-feira, 27 de setembro de 2016

14ª AULA DE FILOSOFIA 2º ANO ENSINO MÉDIO

SÖREN KIERKEGAARD



Kierkegaard é um dos raros autores cuja vida exerceu profunda influência no desenvolvimento da obra. As inquietações e angústias que o acompanharam estão expressas em seus textos, incluindo a relação de angústia e sofrimento que ele manteve com o cristianismo – herança de um pai extremamente religioso, que cultuava a maneira exacerbada os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião de Estado.
Sétimo filho de um casamento que já durava muitos anos – nasceu em 1813, quando o pai, rico comerciante de Copenhague, tinha 56 e a mãe 44 –, chamava a si mesmo de "filho da velhice" e teria seguido a carreira de pastor caso não houvesse se revelado um estudante indisciplinado e boêmio. Trocou a Universidade de Copenhague, onde entrara em 1830 para estudar filosofia e teologia, pelos cafés da cidade, os teatros, a vida social.
Foi só em 1837, com a morte do pai e o relacionamento com Regina Oslen (de quem se tornaria noivo em 1840), que sua vida mudou. O noivado, em particular, exerceria uma influência decisiva em sua obra. A partir daí seus textos tornaram-se mais profundos e seu pensamento, mais religioso. Também em 1840 ele conclui o curso de teologia, e um ano depois apresentava "Sobre o Conceito de Ironia", sua tese de doutorado.
Esse é o momento da segunda grande mudança em sua vida. Em vez de pastor e pai de família, Kierkegaard escolheu a solidão. Para ele, essa era a única maneira de vivenciar sua fé. Rompido o noivado, viajou, ainda em 1841, para a Alemanha. A crise vivida por um homem que, ao optar pelo compromisso radical com a transcendência, descobre a necessidade da solidão e do distanciamento mundano, está em Diários.
Na Alemanha, foi aluno de Schelling e esboça alguns de seus textos mais importantes. Volta a Copenhague em 1842, e em 1843 publica A Alternativa, Temor e Tremor e A Repetição. Em 1844 saem Migalhas Filosóficas e O Conceito de Angústia. Um ano depois, é editado As Etapas no Caminho da Vida e, em 1846, o Post-scriptum a Migalhas Filosóficas. A maior parte desses textos constitui uma tentativa de explicar a Regina, e a ele mesmo, os paradoxos da existência religiosa. Kierkegaard elabora seu pensamento a partir do exame concreto do homem religioso historicamente situado. Assim, a filosofia assume, a um só tempo, o caráter socrático do autoconhecimento e o esclarecimento reflexivo da posição do indivíduo diante da verdade cristã.
Polemista por excelência, Kierkegaard criticou a Igreja oficial da Dinamarca, com a qual travou um debate acirrado, e foi execrado pelo semanário satírico O Corsário, de Copenhague. Em 1849, publicou Doença Mortal e, em 1850, Escola do Cristianismo, em que analisa a deterioração do sentimento religioso. Morreu em 1855.

Filósofo ou Religioso?

A posição de Kierkegaard leva algumas pessoas a levantar dúvidas a respeito do caráter filosófico de seu pensamento. Pra elas, tratar-se-ia muito mais de um pensador religioso do que de um filósofo. Para além das minúcias que essa distinção envolveria, cabe verificar o que ela pode trazer de esclarecedor acerca do estilo de pensamento de Kierkegaard. Pode-se perguntar, por exemplo, quais as questões fundamentais que lhe motivam a reflexão, ou, então, qual a finalidade que ele intencionalmente deu à sua obra.
Estamos habituados a ver, na raiz das tentativas filosóficas que se deram ao longo da história, razões da ordem da reforma do conhecimento, da política, da moral. Em Kierkegaard não encontramos, estritamente, nenhuma dessas motivações tradicionais. Isso fica bem evidenciado quando ele reage às filosofias de sua época – em especial à de Hegel. Não se trata de questionar as incorreções ou as inconsistências do sistema hegeliano. Trata-se muito mais de rebelar-se contra a própria idéia de sistema e aquilo que ela representa.
Para Hegel, o indivíduo é um momento de uma totalidade sistemática que o ultrapassa e na qual, ao mesmo tempo, ele encontra sua realização. O individual se explica pelo sistema, o particular pelo geral. Em Kierkegaard há um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo, de sua especificidade e do caráter insuperável de sua realidade. Não devemos buscar o sentido do indivíduo numa harmonia racional que anula as singularidades, mas, sim, na afirmação radical da própria individualidade.
De onde provém, no entanto, essa defesa arraigada daquilo que é único? Não de uma contraposição teórico-filosófica a Hegel, mas de uma concepção muito profunda da situação do homem, enquanto ser individual, no mundo e perante aquilo que o ultrapassa, o infinito, a divindade. A individualidade não deve portanto ser entendida primordialmente como um conceito lógico, mas como a solidão característica do homem que se coloca como finito perante o infinito. A individualidade define a existência.
Para Kierkegaard, o homem que se reconhece finito enquanto parte e momento da realização de uma totalidade infinita se compraz na finitude, porque a vê como uma etapa de algo maior, cujo sentido é infinito. Ora, comprazer-se na finitude é admitir a necessidade lógica de nossa condição, é dissolver a singularidade do destino humano num curso histórico guiado por uma finalidade que, a partir de uma dimensão sobre-humana, dá coerência ao sistema e aplaca as vicissitudes do tempo.
Mas o homem que se coloca frente a si e a seu destino desnudado do aparato lógico não se vê diante de um sistema de idéias mas diante de fatos, mais precisamente de um fato fundamental que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é o sucedâneo afetivo daquilo que não posso compreender racionalmente; tampouco é um estágio provisório que dure apenas enquanto não se completam e fortalecem as luzes da razão. É, definitivamente, um modo de existir. E esse modo me põe imediatamente em relação com o absurdo e o paradoxo. O paradoxo de Deus feito homem e o absurdo das circunstâncias do advento da Verdade.
Cristo, enquanto Deus tornado homem, é o mediador entre o homem e Deus. É por meio de Cristo que o homem se situa existencialmente perante Deus. Cristo é portanto o fato primordial para a compreensão que o homem tem de si. Mas o próprio Cristo é incompreensível. Não há portanto uma mediação conceitual, algum tipo de prova racional que me transporte para a compreensão da divindade. A mediação é o Cristo vivo, histórico, dotado, e o fato igualmente incompreensível do sacrifício na cruz. Aqui se situam as circunstâncias que fazem do advento da Verdade um absurdo: a Verdade não nos foi revelada com as pompas do conceito e do sistema. Ela foi encarnada por um homem obscuro que morreu na cruz como um criminoso. O acesso à Verdade suprema depende pois da crença no absurdo, naquilo que São Paulo já havia chamado de "loucura". No entanto, é o absurdo que possibilita a Verdade. Se permanecesse a distância infinita que separa Deus e o homem, este jamais teria acesso à Verdade. Foi a mediação do paradoxo e do absurdo que recolocou o homem em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Somente dessa maneira nos colocamos no caminho da recuperação de uma certa afinidade com o absoluto.
Não há, portanto, outro caminho para a Verdade a não ser o da interioridade, o aprofundamento da subjetividade. Isso porque a individualidade autêntica supõe a vivência profunda da culpa: sem esse sentimento, jamais nos situaremos verdadeiramente perante o fato da redenção e, conseqüentemente, da mediação do Cristo.

O Sofrimento Necessário

A subjetividade não significa a fuga da generalidade objetiva: ao contrário, somente aprofundando a subjetividade e a culpa a ela inerente é que nos aproximaremos da compreensão original de nossa natureza: o pecado original. E a compreensão irradia luz sobre a redenção e a graça, igualmente fundamentais para nos sentirmos verdadeiramente humanos, ou seja, de posse da verdade humana do cristianismo. A autêntica subjetividade, insuperável modo de existir, se realiza na vivência da religiosidade cristã.
A subjetividade de Kierkegaard não é tributária apenas da atmosfera romântica que envolvia sua época. Seu profundo significado a-histórico tem a ver, mais do que com essa característica do Romantismo, com uma concepção de existência que torna todos os homens contemporâneos de Cristo. O fato da redenção, embora histórico, possui uma dimensão que o torna referência intemporal para se vivenciar a fé. O cristão é aquele que se sente continuamente em presença de Deus pela mediação do Cristo. Por isso a religião só tem sentido se for vivida como comunhão com o sofrimento da cruz. Por isso é que Kierkegaard critica o cristianismo de sua época, principalmente o protestantismo dinamarquês, penetrado, segundo ele, de conceituação filosófica que esconde a brutalidade do fato religioso, minimiza a distância entre Deus e o homem e sufoca o sentimento de angústia que acompanha a fé.
Essa angústia, no entender de Kierkegaard, estaria ilustrada no episódio do sacrifício de Abraão. Esse relato bíblico indica a solidão e o abandono do indivíduo voltado unicamente para a vivência da fé. O que Deus pede a Abraão – que ele sacrifique o único filho para demonstrar sua fé – é absurdo e desumano segundo a ética dos homens.
Não se trata, nesse caso, de optar entre dois códigos de ética, ou entre dois sistemas de valores. Abraão é colocado diante do incompreensível e diante do infinito. Ele não possui razões para medir ou avaliar qual deve ser sua conduta. Tudo está suspenso, exceto a relação com Deus.

O Salto da Fé

Abraão não está na situação do herói trágico que deve escolher entre valores subjetivos (individuais e familiares) e valores objetivos (a cidade, a comunidade), como no caso da tragédia grega. Nada está em jogo, a não ser ele mesmo e a sua fé. Deus não está testando a sabedoria de Abraão, da mesma forma como os deuses testavam a sabedoria de Édipo ou de Agamenon. A força de sua fé fez com que Abraão optasse pelo infinito.
Mas, caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão ainda assim não teria como justificá-lo à luz de uma ética humana. Continuaria sendo o assassino de seu filho. Poderia permanecer durante toda a vida indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida permaneceria para sempre. No entanto Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse imediatamente da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade a situação de homem religioso. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana, precisamente porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A crença é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.
Por tudo o que a existência envolve de afirmação de fé, ela não pode ser elucidada pelo conceito. Este jamais daria conta das tensões e contradições que marcam a vida individual. Existir é existir diante de Deus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de um abismo. Não se pode apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que a existência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade. A fé reúne a reflexão e o êxtase, a procura infindável e a visão instantânea da Verdade; o paradoxo de ser o pecado ao mesmo tempo a condição de salvação, já que foi por causa do pecado original que Cristo veio ao mundo. Qualquer filosofia que não leve em conta essas tensões, que afinal são derivadas de estar o finito e o infinito em presença um do outro, não constituirá fundamento adequado da vida e da ação. A filosofia deve ser imanente à vida. A especulação desgarrada da realidade concreta não orientará a ação, muito simplesmente porque as decisões humanas não se ordenam por conceitos, mas por alternativas e saltos.

quinta-feira, 15 de setembro de 2016



Aula de Filosofia 3º ano Ensino Médio
Maquiavel, o pai da filosofia política moderna - Segundo o filósofo Antônio Bento, o maquiavelismo “sobreviveu” ao seu criador, mesmo entre aqueles que se diziam seus inimigos políticos. Thomas Hobbes foi largamente influenciado pelas ideias do florentino ao compor o Leviatã
Por: Márcia Junges
“Os termos ‘maquiavelismo’ e ‘maquiavélico’ se impuseram no imaginário político moderno europeu como sinônimos de uma ação política baseada na fraude, na violência e na impiedade”, reflete o filósofo português Antônio Bento, na entrevista que concedeu,  ele acrescenta: “acusar um determinado inimigo político de ‘maquiavelismo’ e estigmatizar publicamente os seus atos como ‘maquiavélicos’, constitui, no fundo, uma simples arma de arremesso político”. A influência política do pensador florentino, “a despeito de um desprezo e de um ódio imensos, jamais deixou de se sentir. Pelo contrário, antes ganhou mais e mais terreno, e, como de certa maneira não poderia deixar de acontecer, preferencialmente no próprio seio daqueles que se declaravam seus inimigos políticos”.
Antônio Bento é doutor em Filosofia pela Universidade da Beira Interior — UBI, em Covilhã, Portugal, onde é vice-diretor do curso de Ciência Política e Relações Internacionais. Aí integra como investigador o Instituto de Filosofia Prática (IFP) e o Centro de Estudos Judaicos (CEJ). É membro do editorial da revista Machiavelli and Machiavellism integrada no Progetto Hypermachiavellism (www.hypermachiavellism.net). Organizou e editou Maquiavel e o Maquiavelismo (Coimbra: Almedina, 2012) e Razão de Estado e Democracia (Coimbra: Almedina, 2012). Mais recentemente, organizou e editou (com José Rosa) Revisiting Spinoza’s Theological-Political Treatise (Zürich — New York: Hildesheim, Georg Olms Verlag, 2013).
Confira a entrevista.

O que é o maquiavelismo e o hipermaquiavelismo?
António Bento - Uma resposta adequada e, tanto quanto possível, exaustiva, à sua pergunta — na aparência tão genuína e simples — mobilizaria certamente uma biblioteca inteira, não uma biblioteca qualquer, nem sequer uma biblioteca especializada em estudos sobre Maquiavel, mas uma “biblioteca total”, digamos que à semelhança daquela “Biblioteca de Babel” concebida por Jorge Luis Borges! Tal a “reputação” e tamanhas as lendas associadas ao nome Maquiavel!
Mas, enfim, para tentar responder concretamente à sua pergunta, começaria talvez por evocar um estudo de Gilles Deleuze sobre a repercussão dos nomes de Sade e de Masoch na história da literatura médica, os quais, constituindo prodigiosos exemplos de eficácia clínica, estão na origem da designação, como se sabe, de duas perversões sexuais de base: o “sadismo” e o “masoquismo”. Aceitando provisoriamente e com reservas esta analogia, pode-se perguntar se Maquiavel não será também um daqueles grandes “doentes” típicos que emprestam às doenças (o “maquiavelismo”; o “hipermaquiavelismo”) os seus nomes próprios? Mas talvez devamos começar por modificar ligeiramente a pergunta, de modo a obtermos outro tipo de respostas, respostas que, precisamente, digam respeito a outro tipo de perguntas: não serão antes os “médicos” que, a posteriori e analisando de perto a “doença”, agrupam sintomas até então dissociados (batizando-os, desbatizando-os e rebatizando-os) compondo um “quadro clínico” novo e original à custa de um sortilégio extraordinário e de um estranho poder de conotar signos (signos políticos, no caso de Maquiavel) que um determinado nome próprio possui e liberta?

Maquiavelismos
A verdade é que os termos “maquiavelismo” e “maquiavélico” se impuseram no imaginário político moderno europeu como sinônimos de uma ação política baseada na fraude, na violência e na impiedade. Como quer que seja, “maquiavelismos” há e haverá, com toda a certeza, sempre muitos e diversos, de acordo, aliás, com as épocas da história e com os combates políticos que lhes dão forma. Já no século XVII, naquela que foi, sem dúvida, a primeira grande cruzada moralista — simultaneamente contra reformista e protestante — contra os escritos e ensinamentos políticos de Maquiavel, existiram decerto o “maquiavelismo” de Maquiavel, o “maquiavelismo” dos “maquiavelistas” e o “maquiavelismo” dos “antimaquiavelistas”. E os “antimaquiavelismos” serão tantos quantos os potenciais inimigos — coevos, modernos, contemporâneos — de Maquiavel: anglicanismo ou protestantismo, jesuitismo ou galicanismo, tacitismo, cepticismo, fideísmo, ateísmo, etc. Cada uma destas seitas ou ideologias acusou as outras ou foi por elas acusada de “maquiavelismo”. A verdade é que, como observou algures Thomas Berns, “nenhuma se reivindicou do maquiavelismo, de tal modo que este inimigo comum e fugidio a que Maquiavel deu o seu nome parece ser o grande ausente do debate”.
Pierre Bayle, por exemplo, na entrada “Maquiavel” do seu Dictionnaire historique et critique (1697), faz-se portador da opinião reinante segundo a qual o ensino do secretário florentino possui um carácter “cínico”, “irreligioso”, “blasfemo”, “demoníaco”: “O público está persuadido de que o maquiavelismo e a arte de reinar tiranicamente são termos de igual significação”. Um século mais tarde, Toussaint Guiraudet escrevia o seguinte num prefácio às Œuvres de Machiavel: “O nome de Maquiavel parece consagrado em todos os idiomas a recordar ou mesmo a expressar todos os desvios e as prevaricações da política mais astuciosa e mais criminosa. A maior parte de todos os que o pronunciaram, como a todas as outras palavras de uma língua, antes de saberem o que ele significa e de onde deriva… deve ter acreditado que era o nome de um tirano”. Federico Chabod, por exemplo, para me deter apenas em um interessante estudioso contemporâneo da obra de Maquiavel, observa, a justo título, o modo como todos nós, mesmo antes de havermos lido — quanto mais estudado — as obras de Maquiavel, usamos, sem hesitações de qualquer espécie, o termo “maquiavelismo”: “É como se Maquiavel tivesse criado não a teoria da política, mas a própria política, sem mais; como se, antes dele, os monarcas tivessem sido todos eles candura, bondade e boa-fé, e apenas de Maquiavel houvessem aprendido a reger o Estado com outros meios que não o pai-nosso”. 

A política como “o mal”
Em poucas palavras, tamanho é, enfim, o poder de sugestão da expressão “maquiavelismo”, que houve mesmo quem pretendesse traçar uma história do “maquiavelismo anterior a Maquiavel” (cf. Maurice Joly , Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, 1864) ou de um “maquiavelismo perpétuo e universal”, dando assim razão aos que pensam que o “mito do maquiavelismo” traz consigo não apenas uma identificação da política com a perversidade, mas a acusação implícita de que a perversidade política absorve e resume em si mesma toda e qualquer forma de perversidade que o homem possa conhecer ou praticar. Por exemplo, do ponto de vista político que enforma a visão dos funcionários católicos governamentais da Contrarreforma, o “maquiavelismo”, depositário de toda a sorte de iniquidades e malfeitorias, era a encarnação da imoralidade em política, uma encarnação de tal maneira forte que, como refere Claude Lefort, “sugere a identificação da política com a imoralidade”. Mais: tendo em conta que a malignidade e a “tentação” do “maquiavelismo” é a malignidade e a “tentação” de obter o sucesso e o poder por meio do mal, “o maquiavelismo é o nome dado à política na medida em que ela é o mal” (Claude Lefort). 
Ora, creio que o mesmo se poderá dizer dos dias de hoje, sobretudo se tivermos em conta, como observa Carl Schmitt no seu opúsculo O Conceito do Político, que “todos os conceitos, representações e palavras políticas têm um sentido polêmico; visam a um antagonismo concreto e estão ligados a uma situação concreta cuja última consequência é um agrupamento amigo-inimigo, transformando-se em abstrações vazias e fantasmagóricas quando esta situação deixa de vigorar”. Sob esta perspectiva, acusar um determinado inimigo político de “maquiavelismo” e estigmatizar publicamente os seus atos como “maquiavélicos” constitui, no fundo, uma simples arma de arremesso político. 

Jesuitismo e maquiavelismo
A propósito do caráter semanticamente flutuante e politicamente estratégico dos termos “maquiavelismo” e “maquiavélico”, e para, finalmente, terminar de responder a uma pergunta cuja resposta é praticamente interminável, recordo as palavras certeiras de Claude Lefort na sua obra Le travail de l’œuvre Machiavel: “Enquanto na França o maquiavelismo é principalmente o símbolo de uma política de intolerância, cujo objetivo é sujeitar a religião ao serviço do governo, na Espanha ele associa-se aos partidários da tolerância, àqueles que são acusados de arruinar a unidade religiosa, com o fim único de assegurar o poder do Estado. Enquanto aos olhos dos jesuítas o maquiavelismo é o breviário da Reforma, para os protestantes ele confunde-se com o jesuitismo”. 
Não por acaso, a assimilação do “jesuitismo” ao “maquiavelismo” tomou, num país católico como Portugal, foros de cidadania na formulação de um autor como António Sérgio, o qual, opositor da ditadura de António Oliveira Salazar , equacionou do seguinte modo ambos os «ismos» nos seus Diálogos de Doutrina Democrática (1933): “Um dia, num palácio dos arredores da cidade de Milão, a princesa italiana que nele morava mostrou-me um crucifixo de lavor artístico, obra italiana do Renascimento. Admirei. ‘Agora’, disse-me a dona, ‘puxe pela parte superior da cruz.’ Puxei. Cedeu. Brilhou uma lâmina. Era um punhal com a forma exterior de um crucifixo. Aí tens a imagem da perversão da mente a que eu dou o nome de ‘jesuitismo’. A religião exterior e o mal interior; a política a destruir a ética; a ordem aparente a corromper o espírito, a coerência íntima; a verdade sacrificada a um efeito sensível”. 

Em que medida esses conceitos transcendem ou mesmo extrapolam as ideias propostas por Maquiavel?
António Bento - Creio que a resposta anterior deixa já entrever as chaves para a compreensão do que alguns comentadores chamam de “o enigma Maquiavel”. Em todo o caso, talvez importe sublinhar, uma vez mais, o carácter semanticamente flutuante e politicamente estratégico dos conceitos em questão. No fundo, o que eles significam é algo de muito simples, mas tremendamente efetivo, a saber: que a influência política de Maquiavel, a despeito de um desprezo e de um ódio imensos, jamais deixou de se sentir. Pelo contrário, antes ganhou mais e mais terreno, e, como de certa maneira não poderia deixar de acontecer, preferencialmente no próprio seio daqueles que se declaravam seus inimigos políticos. Com efeito, foram principalmente os seus inimigos políticos mais resolutos e radicais que contribuíram para fortalecer o interesse na sua pessoa e desencadear uma obsessiva curiosidade pela sua obra, ao ponto de a abominação e a diabolização do nome Maquiavel ser acompanhada por um estranho sortilégio que, não raras vezes, se traduziu numa admiração e fascínio compulsivos. 
Ernst Cassirer, na sua obra O Mito do Estado, observou muito bem este aspecto primordial do significado e da repercussão política da obra de Maquiavel. Em suma, a reputação e a influência de Maquiavel atingiram ao longo dos séculos um ponto tal que se foi tornando cada vez mais difícil encontrar qualquer diferença significativa entre os admiradores e seguidores de Maquiavel e os seus detratores e inimigos. Pode, aliás, admitir-se que é na paradoxal aliança de uns e de outros que hão de ser buscadas as razões remotas da crescente fortuna do “maquiavelismo” e do “hipermaquiavelismo” no pensamento político moderno e contemporâneo. O “maquiavelismo”, enfim, sobrevivera a Maquiavel. E se Maquiavel morrera, os fantasmas associados à sua teoria política haveriam de regressar abruptamente em todas as suas novas reencarnações. Exemplo do que acabo de referir é o modo como, já em 1589, Christopher Marlowe, no prólogo de O Judeu de Malta, apresenta o secretário florentino:
«Apesar de o mundo pensar que Maquiavel morreu,
Foi tão-só a sua alma que voou para além dos Alpes;
E agora, que o Guise morreu, veio de França, 
Para ver estas terras, e folgar com os amigos.
Para alguns o meu nome é, se calhar, odioso,
Mas, vós, os que me amais, livrai-me das suas línguas;
E fazei-lhes saber que eu sou Maquiavel,
Que não julgo os homens, nem, portanto, as palavras que estes dizem.
Muito me espantam aqueles que tanto me odeiam.
E se alguns falam abertamente contra os meus livros,
Hão de, ainda assim, ler-me, e desse modo chegar
À cadeira de Pedro; e mesmo quando me põem de parte,
São envenenados pelos imitadores que não me largam.»
 Carl Schmitt compreendia Maquiavel como alguém mais do que apenas o autor de O Príncipe. Tendo esse horizonte em vista, que chaves de leitura devem ser tomadas em consideração a partir das outras obras desse pensador, como Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio?
António Bento - O problema não é pacífico, nem isento de certas paixões, digamos assim, hermenêuticas. Muito antes de Carl Schmitt, outros autores, não menos importantes que o jurista alemão, insistiram no duplo aspecto do ensinamento político de Maquiavel, consoante este é deduzido de O Príncipe ou de Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (ou ainda de Histórias Florentinas). 
Afinal, bem vistas as coisas, não teria sido o próprio Maquiavel — de acordo com uma tradição republicana, liberal, romântica, e até marxista, de interpretação do seu pensamento — muito pouco “maquiavélico”, um daqueles instrutores de príncipes que conhecem o jogo político do Estado e que integralmente o ensinam, ao passo que o “maquiavelismo” vulgar, esse sim, ensinaria a fazer outra coisa? Tal é já a opinião do prudente Espinosa, para quem “talvez Maquiavel quisesse mostrar quanto uma multidão livre deve ter medo de confiar a sua defesa a um só, o qual, se não for vaidoso nem julgar que pode agradar a todos, tem de temer revoltas todos os dias, sendo por isso obrigado a precaver-se e a atraiçoar a multidão em vez de governá-la” (Tratado Político, V). Em idêntico sentido se pronunciou Jean-Jacques Rousseau: “Fazendo crer que dava lições aos reis, dava-as bem grandes aos povos. O Príncipe, de Maquiavel, é o livro dos republicanos”. Ademais, numa elucidativa nota que acrescentou à versão do Contrato social de 1772, observa ainda Rousseau, a propósito de O Príncipe, de Maquiavel, o seguinte: “Maquiavel era um homem honesto e um bom cidadão. Mas, atado à missão dos Médicis, viu-se forçado, na opressão da sua pátria, a mascarar o seu amor à liberdade. Já a escolha do seu execrável herói (César Bórgia) manifesta bem a sua intenção secreta; e a oposição das máximas do seu livro O Príncipe às dos seus Discursos sobre Tito Lívio e às da sua História de Florença demonstra que este político profundo não teve até agora senão leitores superficiais ou corrompidos. A corte de Roma proibiu severamente o seu livro, segundo penso; é ela que ele mais claramente descreve”. Em pleno Iluminismo, numa época em que uma afetada expressão pública de uma repugnância pela política fez a sua escola, no artigo “Maquiavelismo” da Encyclopédie (t. IX, Neuchâtel, 1765, p. 793), Diderot dá, também ele, pouco mais ou menos, uma interpretação semelhante de O Príncipe: “Quando Maquiavel escreveu o seu tratado do príncipe, é como se ele tivesse dito aos seus concidadãos, lede bem esta obra. Se um dia aceitardes um senhor, ele será tal como eu vo-lo pinto: eis o animal feroz ao qual vos abandonareis”. 

“Manual para gângsteres”
Quanto ao ódio que os seus contemporâneos destilaram sobre Maquiavel, apresentara-o já Trajano Boccalini, na primeira década de seiscentos, nos seguintes termos: “Os inimigos de Maquiavel consideram-no homem digno de punição porque revelou como os príncipes governam e, assim, instruiu o povo; ‘colocou dentes de cães nas ovelhas’, destruiu os mitos do poder, o prestígio da autoridade, tornou mais difícil governar, porque os governados podem saber a este respeito tanto quanto os governantes”. 
Não foi, porém, esta benigna interpretação que os autores da teoria política católica da Contrarreforma colheram nos escritos de Maquiavel, nem a alegada admiração do secretário florentino pelos ideais republicanos da Roma antiga magnificamente expressa nos Discorsi suscitou alguma vez neles simpatia ou simplesmente respeito. Àquela visão benevolente atrás referida, preferiram a visão mais comum e mais antiga de Maquiavel, uma visão segundo a qual, e cito Isaiah Berlin, “Maquiavel é um homem inspirado pelo Demônio, para arrastar os homens bons à perdição, o grande subversor, o mestre do mal, le docteur de la scélératesse, o inspirador do Massacre de São Bartolomeu, o modelo de Iago. É o ‘sanguinário Maquiavel’ das famosas quatrocentas e tal referências da literatura isabelina. O seu nome acrescenta um novo ingrediente à figura mais antiga do Old Nick (O Diabo). Para os jesuítas, ele é ‘sócio do diabo nos crimes’, um escritor infame e um cético, e O Príncipe é, nas palavras de Bertrand Russell, ‘um manual para gângsteres’”. Para concluir, refiro apenas as palavras que um autor da estatura de Leo Strauss consagra ao duplo ensino de Maquiavel (tirânico em O Príncipe; republicano nos Discorsi): “Não escandalizaremos ninguém, apenas nos exporemos ao ridículo amável ou em todo o caso inofensivo, se nos declaramos inclinados para a opinião antiquada e simples segundo a qual Maquiavel era um mestre do mal”.

De que modo Maquiavel e Hobbes problematizam a questão da natureza humana e do absolutismo? Como tais compreensões repercutem na política ocidental?
António Bento - A questão do “absolutismo”, se tomarmos este conceito no seu estrito significado histórico e político, só se põe a partir do momento em que Jean Bodin, primeiro, e Thomas Hobbes, depois, definem e formulam, cada um, evidentemente, à sua maneira, o conceito jurídico-político de “soberania”. Creio que cometeríamos um anacronismo se porventura começássemos a falar impropriamente de “soberania” e de “absolutismo” em Maquiavel.
Quanto à questão da “natureza humana” ou “antropologia política” de Maquiavel e de Hobbes, a proximidade entre ambos é manifesta e indesmentível, pois as obras de um e de outro pressupõem o homem como covarde, medroso, mau, egoísta, ingrato, violento, etc. Até certo ponto, e de uma certa maneira, como um dia observou Carl Schmitt, podemos tomar todas as teorias do Estado e todas as ideias políticas na sua correspondente antropologia e classificá-las conforme elas, consciente ou inconscientemente, pressuponham que o homem é “mau por natureza” ou “bom por natureza”. Na verdade, a elucidação desta questão é fundamental para o esclarecimento do conceito moderno de “direito natural”, tal como, precisamente, Thomas Hobbes o formulou. Não por acaso, o pai da filosofia política moderna, Maquiavel, considera que “quem pretenda fundar um Estado e dar-lhe leis deve antecipadamente pressupor os homens como maus e sempre prontos a mostrar a sua malvadez logo que para tal se lhes ofereça uma ocasião”. A verdade é que, um século e meio depois de Maquiavel ter proferido esta sentença, é ainda sobre a demonstração deste enunciado relativo à natureza do homem que Thomas Hobbes funda a necessidade do seu Leviathan (metáfora bíblica para o Estado moderno).

Medo “natural” e direito “racional”
Sabe-se como é de uma determinada articulação entre o medo da morte violenta (a paixão mais poderosa) e o direito à conservação da vida (o direito mais sagrado) que Thomas Hobbes deduz o seu Leviathan. Sabe-se também como uma boa parte — a grande parte — da tradição da filosofia política moderna provém da racionalização deste “medo” e da naturalização deste “direito”. A um medo “natural” racionalizado, faz ela corresponder um direito “racional” naturalizado. O que isto imediatamente significa é que a economia política da vida moderna se define por um cálculo racional de riscos e de benefícios no qual o “medo” é disposto como o fundamento prático e a garantia especulativa do “direito”. Mais: a naturalização do direito à conservação da vida só pode ter como corolário o aumento do medo da morte violenta e a consequente existência de um «direito» que deve modernamente apresentar-se — e justificar-se — como uma segurança contra o medo. Uma segurança “mítica”, em todo o caso, e, no sentido que Walter Benjamin atribui ao que ele chama “violência mítica” do direito, também uma segurança “sagrada”. Foi neste ponto que Thomas Hobbes nos colocou e do qual ainda hoje permanecemos cativos: a política concebida como fábrica de segurança e o direito como apólice universal contra o medo. De acordo com o que antes ficou dito, decorre, portanto, da própria lógica jurídica hobbesiana, que quanto mais “conservável” é a vida de que a política soberana se ocupa, tanto mais essa vida é potencialmente “sacrificável”.

Poder imunitário
A moderna e sumamente hobbesiana vontade de segurança, com a sua lógica imunitária de prevenção e cura, faz periclitar a própria vida ao expulsar ilusoriamente a morte do âmbito da vida. Mas esta potência de contradição ínsita ao princípio imunitário de conservação da vida revela-se ainda de outra forma no pensamento de Thomas Hobbes. A verdade é que a vontade de segurança, a imunização (sempre precária) à morte, a promessa, enfim, de proteção da vida que o poder soberano moderno faz aos seus súditos, contém em si mesma, e de maneira constitutiva, a possibilidade (dir-se-ia, antes, a necessidade) inversa: o poder absoluto de dar a morte. O que isto significa é que não apenas o “estado de natureza” sobrevive no “estado político”, como nele se intensifica sob o seu modo mais próprio, aí adquirindo o seu cunho tipicamente moderno.
Com efeito, no nexo constitutivo entre a política e a vida que define a biopolítica moderna, a política (em termos hobbesianos, a proteção imunitária proporcionada pelo “estado civil”) é a continuação da guerra (do risco e do perigo do “estado natural”) por outros meios. Assim, expulso, por um artifício da razão, para o exterior do “pacto”, este poder de dar a morte irrompe no interior do próprio “pacto”, como a sua condição de possibilidade. Em termos hobbesianos, é este ponto de intersecção entre o “pactum societatis” e o “pactum subjectionis” que faz da vida individual de cada súdito simultaneamente um sujeito da “soberania” e um sujeito à “soberania”. Com efeito, no seu afã de colocar a morte ao serviço da esfera mítica do direito, o poder soberano institui um contrato com os súditos ao mesmo tempo que lhes lança uma ordem: “obedece se queres ver a tua vida protegida”; “eu lhe dou a vida, mas posso, a qualquer momento, retirá-la”. O poder soberano garante, pois, a proteção da vida apenas com a permanente intrusão da ameaça de morte. Numa perspectiva cínica (ou talvez apenas realista), dir-se-ia que não se trata aqui senão da contrapartida política (que é também o seu perigoso reverso) que assiste o estabelecimento do direito natural moderno, cuja positivização, pode-se dizer, Hobbes inaugurou. Trata-se, em todo o caso, como refere Thomas Hobbes no final do Leviathan, do cumprimento inviolável de uma “mutual relation between protection and obedience”. Carl Schmitt formulou um dia esta permanente conexão entre proteção e obediência que caracteriza a doutrina do Estado de Thomas Hobbes do seguinte modo: “O protego ergo obligo é o cogito ergo sum do Estado”.

Paradigma da imunidade
Mas as consequências profundas do pensamento político de Thomas Hobbes repercutiram de modo assaz veemente e surpreendente na nossa contemporaneidade. De acordo com Roberto Esposito, o autor que melhor refletiu sobre as consequências do paradigma securitário hobbesiano nas sociedades contemporâneas, a política conhece cada vez mais, e hoje, porventura, mais do que nunca, apenas um “paradigma imunitário”. De acordo com a interessante leitura que Esposito faz do pensamento político de Thomas Hobbes, se os conceitos modernos de “soberania”, “propriedade” e “liberdade” tendem, num determinado momento da sua história, a confluir e a reduzir-se à “segurança” do sujeito que é seu titular, isso é a inevitável consequência do modo imunitário como a modernidade pensa a política. Segundo Esposito, o que ele designa como “paradigma da imunidade” resulta do duplo processo cruzado de politização da vida e de biologização da política, o qual reúne num único horizonte de sentido as duas dimensões do conceito de “imunidade”: a dimensão jurídico-política e a dimensão biológica. Ainda, segundo este autor, uma vez consumada a completa sobreposição do léxico político e do léxico médico modernos, “a imunização torna-se não apenas no instrumento, mas também na forma da civilização ocidental”.
Finalizando: que um paradigma político imunitário governa hoje de maneira transversal e capilar as relações humanas globais no seu conjunto, comprova-o o fato de a modulação afetiva e o controle da intensidade do medo se terem tornado um assunto político de interesse público. Cada vez mais, a “sociedade do risco” em que nos movemos é permanentemente ameaçada pelo pânico ante toda a espécie de potenciais catástrofes (ambientais, ecológicas, epidêmicas, terroristas, políticas, econômicas, etc.) que devem ser cientificamente prevenidas. Como observa Frédéric Neyrat: “A biopolítica contemporânea é imediatamente uma imunopolítica de tendência paranoica, que desconfia de fronteiras que se tornam cada vez mais indelimitáveis. […] É, com efeito, impossível compreender os objetivos proclamados da biopolítica sem interrogar a sua ‘outra cena’, o seu fantasma de imunização absoluta, de proteção total”.
Com efeito, capturada numa dialética aporética entre o risco e a proteção, um risco que requer proteção tanto quanto a própria proteção produz, por sua vez, risco, a política moderna tende a criar, por um excesso neurótico de prevenção, autoimunidade, instituindo assim o perigo de morte para a própria espécie. Desse modo, a prevenção — e, no limite, a eliminação — da doença, pode revelar-se mais perigosa do que a própria doença. A consequência disso é que a vida política ocidental entra num curto-circuito permanente. E este crescente interesse pela ideia de regulação do risco, consequência, muitas vezes, de um pânico politicamente administrado, deu origem ao estabelecimento da categoria do “precautionary principle” (ou “Vorsorgeprinzip” no original), a que eu chamo princípio de absolutização da imunidade política. Princípio da irresponsabilidade.

IHU On-Line - Em que sentido as constatações políticas de Maquiavel ecoam nas concepções políticas de Nietzsche, como na grande política, na vontade de poder e na transvaloração dos valores?
António Bento - Creio, sinceramente, que em absolutamente nenhum sentido. Efetivamente, não creio que se possa, e menos ainda deva, misturar o sol materialista de Florença com o nevoeiro metafísico de Bayreuth… Isto, claro, ressalvando embora toda a genuína admiração de Nietzsche por Maquiavel: “A minha recriação, a minha predileção, a minha cura de todo o platonismo foi sempre Tucídides. Tucídides e, talvez, O Príncipe, de Maquiavel, me são mais afins pela determinação incondicional de não se deixar iludir em nada e de ver a razão na realidade — não na ‘razão’, e menos ainda na ‘moral’…”, confessa o “cabeça-de-dinamite” (Ernst Jünger) em O Crepúsculo dos Ídolos. 

Nesse sentido, como o “estatuto da mentira na Filosofia Política” pode ser compreendido se pensarmos a partir da perspectiva de Maquiavel e Nietzsche?
António Bento - São, com certeza, perspectivas distintas as de Maquiavel e de Nietzsche em torno da “mentira”, em geral, e, sobretudo, a respeito da “mentira política”, em particular. Contudo, há que sublinhar igualmente a existência de afinidades e de semelhanças. No caso de Nietzsche estamos, por um lado, perante uma teoria artística da mentira, que faz do poder do falso uma magnificação do “mundo enquanto erro”, transformando a vontade de enganar num ideal estético superior e, por outro, diante de uma teoria pragmática da linguagem. 
Num ensaio de 1873, intitulado Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral, Friedrich Nietzsche elabora uma teoria da verdade que está muito próxima de algumas modernas teorias pragmáticas da linguagem. Em primeiro lugar, a verdade é aí valorizada porque é útil para a comunidade, boa para a sociedade, e não porque corresponda a um efetivo conhecimento das coisas. Em segundo lugar, a linguagem, enquanto instrumento privilegiado do conhecimento, é fundamentalmente uma estrutura de dissimulação, um mecanismo de apropriação e de captura da realidade, e não uma espécie de espelho da realidade. O ponto de partida desta concepção nietzschiana da linguagem é que a verdade não é valorizada por interesses, em primeiro lugar, científicos, ou éticos, em geral, mas por sujeitos interessados na sobrevivência e numa vida comunitária, social, estável. A verdade não é, portanto, dissociável da noção de verdade como “valor”, a qual interessa mais ao instinto de preservação (“Erhaltungstrieb”) e menos a uma espécie de instinto para a verdade ou de inclinação natural do homem para a verdade (“Wahrheitstrieb”). Na Genealogia da Moral (III, 24) Nietzsche observa: “A verdade tem sido sempre postulada como essência, como Deus, como instância suprema [...] Mas a vontade de verdade tem necessidade de uma crítica. Defina-se assim a nossa tarefa — é necessário de uma vez por todas pôr em questão o valor da verdade”. O problema que Nietzsche aqui apresenta é muito simples: no seu entender, os filósofos clássicos nunca puseram realmente em questão o valor da verdade e muito menos esclareceram as razões para que o homem se submetesse à verdade. Esqueceram-se, afinal, pensa Nietzsche, de fazer uma pergunta simples, uma pergunta, porém, incontornável: Quem procura a verdade? Quer dizer: o que é que quer aquele que procura a verdade? Qual é o seu tipo? Qual a sua vontade de poder?

Verdade e convenção
Convém sublinhar que não se trata, para Nietzsche, de pôr em dúvida a vontade de verdade, embora ele nos venha lembrar que os homens, de fato, não amam, naturalmente, a verdade, e que muitas vezes, mais do que os seus erros, são os seus interesses e a sua estupidez que os separam da verdade. Com muita seriedade, Nietzsche aceita pensar este problema colocando-se, de boa-fé, no próprio terreno em que o problema é posto: no terreno moral. Assim, Nietzsche procura antes pensar o que a verdade pode significar como conceito, que tipo de forças e que espécie de poderes se apropriam dela. Por outro lado, em Humano, Demasiado Humano (§ 54), Nietzsche afirma que o mentiroso não é excluído da comunidade pelo fato de dizer mentiras, mas porque essas mentiras são ilusões consideradas perniciosas para a paz ou para o contrato social: “Por que dizem os homens, a maior parte das vezes e na vida de todos os dias, a verdade? Não é certamente porque um Deus proibiu a mentira. Mas sim, primeiramente: porque dizer a verdade é mais fácil, dado que a mentira exige invenção, dissimulação e memória. E é ainda: porque em circunstâncias simples, é vantajoso falar francamente: quero isto, fiz aquilo, e assim sucessivamente; portanto, porque o caminho da coação e da autoridade é mais seguro que o do ardil. Mas, por pouco complicadas que tenham sido as circunstâncias domésticas em que uma criança tenha sido educada, ela serve-se naturalmente da mentira e diz sempre, involuntariamente, tudo o que serve aos seus próprios interesses: a noção da verdade, a repugnância pela mentira em si, lhe são totalmente estranhas e inacessíveis, e a criança mente com toda a inocência”. “Na medida em que o indivíduo se quer conservar relativamente aos outros indivíduos”, diz-nos Nietzsche, “este, na maior parte das vezes, utiliza o intelecto num estado natural das coisas, somente para a dissimulação; mas, como o homem quer existir tanto por necessidade como por tédio, socialmente e por rebanho, precisa fazer a paz e aspira a que desapareça do seu mundo o mais brutal bellum omnium contra omnes. Esta paz traz consigo algo que se parece com o primeiro passo para a obtenção daquele enigmático impulso para a verdade”. 
Podemos, enfim, dizer que o pensamento de Nietzsche concebe a valorização da verdade como uma subordinação da verdade à convenção. O indivíduo que mente é o que transgride convenções que são importantes para a manutenção da paz social e é, também, por essa razão que a antinomia moral verdade/mentira — que é anterior à antinomia epistemológica verdade/falsidade — se impôs definitivamente. A primeira oposição, de origem moral, determinou a segunda, de cariz epistemológico.

Imperativo
Quanto a Maquiavel, o problema da mentira surge associado à necessidade de dissimulação/simulação intrínseca ao político e, por vezes, à estritamente necessária inobservância da palavra dada. Com efeito, no capítulo XVIII de O Príncipe, o secretário florentino observa o seguinte: “Quão louvável seja num príncipe o manter a palavra dada e viver com integridade e não com astúcia, qualquer um o entende. No entanto, vê-se pela experiência do nosso tempo terem feito grandes coisas aqueles príncipes que tiveram em pouca conta a palavra dada e que souberam, com a astúcia, dar a volta aos cérebros dos homens; e no fim superaram aqueles que se fundaram na sinceridade. […] Não pode, portanto, um senhor prudente, nem deve, observar a palavra dada quando tal observância se volta contra ele e se extinguiram os motivos que o fizeram prometer. E, se os homens fossem todos bons, este preceito não seria bom. Mas, porque eles são ruins e não a observariam para contigo, tu também não a tens de observar para com eles, nem faltarão jamais a um príncipe motivos legítimos para mascarar a inobservância”.
Tal como em O Príncipe, também nas Histórias Florentinas (III, 5) Maquiavel justifica o perjúrio e a mentira pelo imperativo pragmático da necessidade e utilidade: “E, como em todos o temor de Deus e a religião desapareceram, o juramento e a palavra empenhada são respeitados só quando podem tornar-se úteis, e os homens disto se valem não para cumprir, mas como meio de melhor enganar; e quanto mais fácil e seguramente o engano é conseguido, mais louvores e glória adquirem: por isso os homens nocivos são louvados como laboriosos, e os bons, como tolos, são ralhados”.

Mutação na história da mentira
Finalmente, há que referir, ainda que necessariamente de forma muito breve e alusiva, às reflexões de Hannah Arendt, uma admiradora confessa do pensamento de Maquiavel, sobre a mentira política moderna. Não foi há muito tempo que a autora de Truth and Politics (1967) chamou a nossa atenção para o carácter ativo e afirmativo da mentira, para o fato de “as mentiras, desde que utilizadas como substitutos de meios mais violentos, poderem ser consideradas como instrumentos relativamente inofensivos no arsenal da ação política”. Que a política e a verdade sempre estiveram em más relações e que a boa-fé jamais foi incluída na classe das virtudes políticas, é algo bem conhecido e mesmo um lugar comum. Com efeito, o segredo, os arcana imperii, o engano, a falsificação deliberada e a mentira descarada são usadas como meios legítimos para alcançar fins políticos desde os primórdios da história documentada. Não por acaso, Hannah Arendt lembra-o constantemente: “As mentiras foram sempre consideradas necessárias e justificáveis, não apenas à profissão do político e do demagogo, mas também à do homem de Estado. Por que será assim? O que é que isto representa, por um lado, para a natureza e a dignidade da esfera política, e, por outro, para a natureza e a dignidade do domínio da verdade e da boa-fé?”.
Um dos pontos interessantes da argumentação de Hannah Arendt neste ensaio prende-se com o reconhecimento da existência de uma transformação ou mutação na história da mentira. Uma mutação simultaneamente na história do conceito de mentira e na história da própria prática do mentir. Segundo Arendt, a mentira teria modernamente atingido o seu limite absoluto, tornando-se agora “completa e definitiva”. Ao contrário de Oscar Wilde, que no seu O Declínio da Mentira diagnostica uma agonia da mentira e lamenta que os políticos, os advogados, e mesmo os jornalistas, saibam cada vez menos mentir e cultivem cada vez menos a mentira, Arendt considera preocupante o crescimento hiperbólico da mentira na arena política moderna: “A possibilidade da mentira completa e definitiva, ainda desconhecida nas épocas anteriores, é o perigo que decorre da moderna manipulação dos fatos. Mesmo no mundo livre, onde o governo não monopolizou o poder de decidir e de dizer o que é ou não é da esfera da fatualidade, gigantescas organizações de interesses generalizaram uma espécie de mentalidade de raison d’État, outrora confinada ao domínio dos negócios estrangeiros, e, nos seus piores excessos, às situações de perigo iminente e atual”.
Neste ensaio, Arendt esboça a problemática da efetividade e da performatividade de uma mentira cuja estrutura e acontecimento estariam ligados, de maneira essencial, ao conceito de “ação”, e, mais precisamente, ao conceito de “ação política”. É este um motivo presente logo nas primeiras páginas de Lying in Politics. Reflections on the Pentagon Papers: “Uma característica da ação humana é que ela começa sempre algo novo, o que não significa que seja sempre permitido começar ab ovo, criar ex nihilo. De modo a arranjar espaço para a nossa própria ação, algo que já aí estava antes deve ser removido ou destruído, e deste modo as coisas mudam e deixam de ser o que eram antes. Essa mudança teria sido impossível se não pudéssemos remover-nos mentalmente do local onde fisicamente estamos e imaginar que as coisas poderiam ser muito diferentes do que de fato são. Por outras palavras, a negação deliberada da verdade fatual — a capacidade para mentir — e a faculdade de mudar os fatos — a capacidade para agir — estão interligadas. Elas devem a sua existência à mesma fonte: a imaginação”.

Verdade dos fatos e opinião
Finalmente, Hannah Arendt lembra-nos que o mentiroso é, por excelência, um homem de ação. Entre mentir em política e agir em política, entre manifestar a sua liberdade pela ação, transformar os fatos e antecipar o futuro, há como que uma afinidade essencial. A imaginação: eis, segundo Arendt, a raiz comum à “capacidade de mentir” e à “capacidade de agir”. Capacidade de produzir a imagem. Pois “imagem” é justamente a palavra-chave ou o conceito maior de todas as análises consagradas à mentira política do nosso tempo. Sob esta perspectiva, a mentira é o futuro, podemos arriscar dizê-lo, sem, contudo, trair a intenção de Arendt neste contexto. Dizer a verdade é, pelo contrário, dizer o que é ou terá sido, o que será sempre preferir o passado. Hannah Arendt fala, pois, de uma afinidade indesmentível da mentira com a ação, com a mudança do mundo — em suma, com a política. “Ao contrário daquele que diz a verdade — diz ela —, o mentiroso não tem necessidade desses arranjos duvidosos para aparecer na cena política, afirma aquilo que não é, porque deseja que as coisas sejam diferentes daquilo que são, isto é, ele quer mudar o mundo. […] Por outras palavras, a nossa capacidade para mentir — mas não necessariamente a nossa capacidade para dizer a verdade — pertence aos poucos dados óbvios e demonstráveis que confirmam a existência da liberdade humana”. 
Tudo se passa como se não pudesse haver história em geral, e história política em particular, sem esta ação, sem esta liberdade que a possibilidade de mentir oferece. Hannah Arendt julga, contudo, saber que os fatos se afirmam a si próprios pela sua inflexibilidade; que, se os fatos são manipuláveis, uma tal manipulabilidade está paradoxalmente ligada à grande resistência que eles oferecem à distorção, pois os fatos seriam portadores dessa irreversibilidade que constitui, para ela, a marca distintiva de toda a ação humana. Com efeito, Hannah Arendt está profundamente convencida de que o peso e a estabilidade dos fatos — fatos que, por pertencerem ao passado, cresceram até uma dimensão que se pôs fora do nosso alcance — jamais poderão ser substituídos por um artifício produzido pelo poder. Assim, que a linha separadora entre a verdade dos fatos e a opinião seja cada vez mais tênue, isso se explica, segundo Arendt, pelas numerosas máscaras que a mentira, como forma de ação, pode assumir. Mas a verdade — julga Arendt — será sempre estabilidade e irreversibilidade e sobreviverá indefinidamente às mentiras, às ficções e às imagens. Por conseguinte, caso a verdade dos fatos fosse um dia consistente e totalmente substituída pelas mentiras, não seriam as mentiras que passariam a ser aceitas como verdade, nem seria a verdade que passaria a ser difamada como mentira, seria antes o sentido pelo qual nos orientamos no mundo real que ficaria definitivamente destruído. Este o medo de Hannah Arendt. 

Foi apenas no século XIX que se proferiu de modo veemente o vaticínio da morte de Deus, através do último homem que Nietzsche assenta na praça do mercado. Contudo, as bases desse deicídio já vinham sendo construídas antes do filósofo alemão. Nesse sentido, é correto compreender Maquiavel como um dos pilares não só do laicismo, mas de um fenômeno ainda mais profundo como o niilismo?
António Bento - Tem-se abusado em demasia dos conceitos de “laicismo”, “secularização”, “niilismo”… Não posso agora entrar na sua discussão, mas recordo que num um texto escrito nos anos 40 do século XX, intitulado O fim do maquiavelismo, Jacques Maritain , reatualizando sob a forma de um tolerante humanismo cristão os velhos argumentos dos autores católicos da Contrarreforma contra Maquiavel, insiste na “perversidade” do secretário florentino ao sublinhar que ele ensinou os homens não apenas a fazer o mal, mas a fazê-lo de consciência tranquila: “O que era simples fato, com toda a fraqueza e inconsistência que, mesmo no mal, é própria das coisas acidentais e contingentes, depois de Maquiavel ficou sendo direito, com toda a firmeza e solidez próprias das coisas necessárias […]. Esta é a perversão maquiavélica da política, que emerge do fato da “tomada de consciência” maquiavélica do comportamento político médio da humanidade. A responsabilidade histórica de Maquiavel é a de ter aceitado, reconhecido e adotado como regra o fato da imoralidade política e de ter declarado que a boa política, a política conforme sua natureza e seus autênticos fins, é, por essência, uma política não moral”. Mais próximo de nós no tempo, um autor da envergadura de Leo Strauss chama a atenção para o caráter violentamente anticristão da doutrina de Maquiavel, para a sua moralidade diabólica e sem escrúpulos. Maquiavel teria sido um ateu consciente empenhado em subverter e destruir o cristianismo. Maquiavel teria sido o primeiro filósofo político moderno, alguém que, tendo iniciado a revolução contra a tradição do pensamento político ocidental, iniciaria também o declínio da própria civilização ocidental. Tudo o que agora posso laconicamente dizer — sem, contudo, justificar a minha posição — é que esta não é, de todo, a minha opinião.
O que o “Príncipe” moderno deveria aprender com a obra do pensador florentino?
António Bento - Para que possamos responder a esta pergunta é preciso que saibamos exatamente a que ponto o “Estado de direito” hodierno se afastou realmente de Maquiavel. É necessário que avaliemos primeiro, e escrupulosamente, o que nos custa esse afastamento, o que pagamos, enfim, por ele. É necessário, por isso, que saibamos até onde, de maneira talvez insidiosa, Maquiavel se aproximou de nós e do nosso “Estado de direito”. É, pois, necessário que o próprio “Estado de direito” apure o que há ainda de maquiaveliano naquilo que lhe permite pensar-se e definir-se contra Maquiavel. Por fim, é necessário ainda que se avalie em que medida o protesto moral do “Estado de direito” contra Maquiavel não será talvez ainda uma armadilha que o próprio Maquiavel lhe estendeu — uma armadilha de onde ele, Maquiavel, maliciosamente o espreita e observa.
Na verdade, se hoje o “Estado de direito” se confronta com a sua própria imagem no espelho político de Maquiavel, não é, sobretudo, porque procure saber quais os pressupostos do “maquiavelismo” que nele — sob formas novas, é verdade — se mantêm presentes. Assim, submeter Maquiavel e o “maquiavelismo” ao ponto de vista da nossa atualidade política não significa apenas uma mera contabilidade da herança que o presente recebe do passado; antes implica, e de modo decisivo, uma rigorosa avaliação do significado da brecha que o ponto de vista do presente abre entre o passado e a sua própria autointerpretação.