AULA DE FILOSOFIA 2º ANO DO ENSINO MÉDIO POLITÉCNICO
Martin
Heidegger 1889-1976
Martin
Heidegger descrevia sua filosofia como sendo a busca pelo Ser. Heidegger é associado e tido como inseparável da corrente
existencialista, e ele próprio não era
incisivo em desaprovar tal conexão. Sustentava que seria o Ser, enquanto tal,
mais do que a existência pessoal, o centro das suas preocupações. Seu trabalho busca algum tipo de
significado para o fato espantoso de que "há coisas que existem".
Essa postura é em grande parte devedora da filosofia de Kierkegaard e de Edmund Husserl, este último tendo sido
professor de Heidegger. Por sua vez,
Heidegger exerceu profunda influência sobre Jean Paul Sartre. Ele emprega o termo Dasein1 para
descrever o modo de existência de um ser humano, argumentando que a vida
humana é radicalmente diferente de outras
formas de vida, visto ser capaz de possuir consciência de si mesma e de
refletir sobre a sua existência. Os seres humanos, assegura o filósofo, podem escolher
viver de um modo autêntico, tendo um senso completo quanto à sua situação no
mundo, ou de modo inautêntico, quase como um autômato, conformado com as
rotinas e os padrões estabelecidos. Seu principal trabalho filosófico é O
ser e o tempo, publicado em 1927.
Martin
Heidegger nasceu em Baden, na Alemanha. Estudou filosofia na Universidade de
Freiburg, onde Husserl lecionou entre 1916 e 1929, lá se tornando professor
antes de ingressar no corpo docente de Marburg, em 1923. Ele retornou a
Freiburg como professor em 1928, tornando-se reitor da universidade em 1933. No
discurso de posse, aclamou entusiasticamente o nacional-socialismo,
alinhando-se de modo inequívoco ao movimento nazista e advogando uma fusão da
linguagem política corrente com sua própria linguagem filosófica. Porém, dez
meses mais tarde, demitiu-se da reitoria, reconhecendo que havia cometido um
erro grave e retirou-se do engajamento ativo na política. 2
Em
setembro de 1966, numa entrevista concedida para a revista alemã Der Spiegel,
Martin Heidegger respondeu às reprovações que lhe foram dirigidas ao longo de
quase trinta anos, mas ao mesmo tempo vetou a publicação desta matéria até sua
morte. Ela foi finalmente divulgada em 31 de maio de 1976, cinco dias após seu
falecimento. Na entrevista, Heidegger afirmou que tivera esperança de preservar
a autonomia da universidade alemã, embora fosse claro para ele que "isto
não poderia acontecer senão mediante alguns compromissos". Ao mesmo tempo,
disse o filósofo, ele observava no nacional-socialismo uma possibilidade de que
"aqui há algo de novo, aqui existe um novo alvorecer". Seguindo essa
linha de raciocínio, em 1933 ele havia persuadido os alunos a: "não permitir
que doutrinas e ideias fossem as regras de sua existência. O Fuhrer [Adolf
Hitler], ele - mesmo e somente ele, é o presente e o futuro da realidade alemã
e sua regra". Na entrevista, ele ponderou a seu entrevistador: "Eu
não escreveria hoje a sentença que você cita. Mesmo em 1934 eu não dizia mais
tais coisas".
Em
O ser e o tempo, Martin Heidegger fornece uma análise da existência humana. Ele
considera essa análise como um caminho para a compreensão do Ser-em-si. O
método utilizado é a fenomenologia, aprendida com o mestre Edmund Husserl. 3 A
questão central consistia em indicar e descrever os dados da experiência
imediata exatamente como eles são, sem sobrepor a organização conceituai e sem
abstrações. De um ponto de vista fenomenológico, o mundo é a condição com a
qual nos comprometemos e habitamos; ele constitui nossas vidas. Nós não devemos
entender o mundo simplesmente como um objeto físico, no qual nós estabelecemos
sistemas de pensamento individuais. Mais ainda, nós somos
"seres-no-mundo" e Dasein - nossa realidade humana ou modo de ser - é
esta multiplicidade de modos pelos quais nós habitamos a vida: "ter que
fazer algo, produzir algo, esperar algo e procurar por ele, fazer uso de algo,
desistir de algo e deixa-lo ir, ultrapassando, realizando, evidenciando,
interrogando, considerando, discutindo, determinando [...]"4
Heidegger
escreve sobre o "enfrentamento" humano do mundo e sobre a
"atmosfera" na qual este é encontrado como reportando a um valor no
mundo.
Nós
nos encontramos ocupando o mundo, enquanto ocupantes do mundo, no sentido de
que temos nossas próprias perspectivas sobre a vida e utilizamos o que temos ao
nosso redor, isto é, a nossa factualidade. O filósofo fala também a respeito da
apreensão do mundo por parte de cada pessoa, sobre a compreensão da situação de
alguém no mundo e a respeito do entendimento que alguém possa tentar alcançar e
fazer suas previsões, mais do que ser carregado pela corrente de eventos. Mas
este mesmo comprometimento com a vida do mundo gera uma tensão entre a auto realização
de uma pessoa e as práticas comuns impensadas dos "outros" do mundo.
Eu
posso tornar-me despersonalizado, um objeto para uso dos outros, ao sucumbir a
hábitos mecânicos e convenções da existência cotidiana, de acordo com o que é
medíocre, monótono e frequentemente banal. Martin Heidegger descreve tal pessoa
como "o anônimo", um ser humano que se tornou alienado do seu
verdadeiro eu; alguém carente de autenticidade. Caso não seja isto, se eu sou
autêntico, eu irei comportar-me necessariamente de modo chocante ou bizarro,
mas estas minhas ações, por mais bizarras ou mundanas que aparentem ser, originam-se
de minha própria perspectiva, mais do que de fatores externos.
Martin
Heidegger utiliza o termo Sorge, traduzido como "cuidado”, 5 para
descrever a atitude que prevalece do Dasein. O ser humano é, como sempre foi,
"lançado" ao mundo já existente e, portanto, tem que ser responsável
por si mesmo, envolvendo-se adequadamente com o mundo encontrado. Assim, cuidado
ou adequação caracteriza nossa interação incessante com tudo o que encontramos,
utilizamos ou com o que nos envolvemos. Esta é a estrutura do modo pelo qual
nós habitamos a vida: o relacionamento ativo, a condição constituinte e
indispensável do Dasein. A ênfase de Heidegger na elucidação dessa
interdependência entre ser humano e mundo reforça sua rejeição da distinção
tradicional entre o sujeito pensante e o mundo objetivo exterior, e dos
problemas decorrentes de demonstrar a existência e a natureza verdadeira desse
mesmo mundo. Ele argumenta que esta distinção é falsa e que um relato
fenomenológico correto de como as coisas são revela que os seres que se dispõem
a construir a prova de existência do mundo externo são de antemão parte deste
mundo.
Eles
são "seres-no-mundo", não isolados e também não sendo distintos dele.
Entretanto, Heidegger não tenta acomodar nossas construções racionais
referentes aos objetos físicos, assim como o espaço e o tempo das ciências
teóricas, à compreensão fenomenológica. Por exemplo, uma ferramenta do mundo,
tal como um martelo, pode, segundo o filósofo, ser entendida como algo"pronto-para-a-manipulação",
enquanto "em-uso" e ainda como um elemento da minha atividade
presente de ser no mundo. Por outro lado, ele pode ser entendido como um objeto
dado, isto é, "à mão", disponível no mundo. Estas são, simplesmente,
perspectivas diferentes sobre o martelo. O incorreto seria compreender, segundo
Heidegger, a concepção científica como superior à concepção prática, bem como
sua declaração de verdade sobre a natureza da realidade como fundamental e
superior.
Relacionado
ao "cuidado" está o conceito de angústia ou medo, um tema dominante
na filosofia existencialista. Tal como Kierkegaard, Heidegger distingue entre
"angústia" e "medo", assinalando que medo é medo de algum
objeto, enquanto que "é óbvio que a angústia é caracterizada pelo fato de
que suas ameaças não estão em lugar algum”. 6 A angústia é um reconhecimento do
ser no mundo; é experimentada com um sentido esmagador da presença inescapável
e totalmente sem sentido da existência.7 Ela impõe uma consciência vivida da
existência e, sobretudo, uma contemplação das possibilidades que existem para a
pessoa no futuro. Assim, cuidado é característico dessa experiência total: a
preocupação de alguém com a situação presente, com o futuro que está aberto
diante de si e o caminho pelo qual ele se relaciona com os outros e com as
coisas.
Os
seres humanos, afirma Heidegger, estão constantemente fugindo dessa experiência
de liberdade e responsabilidade, escondendo-se no anonimato de uma vida
comunitária irrefletida. Esta é a situação inescapável que constitui o Dasein:
não existirmos somente como parte de uma comunidade, mas como indivíduos
isolados. Ambos os modos de existência são constituintes do modo de existência
humana no mundo. Eles são sua estrutura universal. A experiência da angústia,
ou medo, revela-nos que podemos escolher nós mesmos nosso caminho se assim o
desejarmos; ela também nos revela que podemos fugir da responsabilidade de
realizar essa escolha perpétua.
Heidegger
afirma que a compreensão da morte de alguém é a chave para a autenticidade.
Pelo reconhecimento de que a morte torna tudo sem significado, colocando um
ponto final em todas as possibilidades, nós entendemos, diz o filósofo, que
tanto podemos confrontar este fato como procurar esquecê-lo. Uma completa
aceitação da morte não é rejeitar a participação na vida do mundo. É, isto sim,
simplesmente entender as atividades do mundo no contexto de uma consciência da
morte e confrontar o absurdo de encontrar-se como um habitante da vida que foi
precedida pelo nada e será também sucedida pelo nada. Esta é a compreensão que
pode fazer uma pessoa aceitar a responsabilidade da sua existência. O que é
entendido, com a clareza de uma revelação, é que a nulidade que rodeia a
existência de uma pessoa estende a tudo o mais esta carência de sentido; que
estes sentidos e valores só podem ser outorgados às coisas pela própria pessoa.
A pessoa deve tomar o que está no mundo como se alguém tivesse desejado que
aquilo fosse do jeito que é, e, então, fazer algo disto.
Em
tudo isso, Heidegger não quer indicar que a vida autêntica é moralmente
superior à inautêntica. O que ele afirma é estabelecer a estrutura do Dasein, e
que assim o faz como uma preliminar necessária ao entendimento do Ser como um
todo. Heidegger argumenta ser a temporalidade quem amarra a existência pessoal
no todo, visto que a pessoa não é simplesmente alguém existindo no tempo, mas é
um ser temporal; isto é, um ser com passado, presente e futuro que estão em
interação e recriação perpétua para constituir uma existência pessoal. 8 A
estrutura temporal desta existência é a condição da autoconsciência e da ação,
e também da capacidade de postular um mundo mais amplo e todos os outros
existentes, a respeito dos quais pode-se perguntar porque há tal Ser
constituindo a totalidade. A temporalidade é a condição da história, e também
um entendimento do Ser que, segundo Heidegger, depende da compreensão do tipo
de movimento característico do movimento histórico. Assim, é tarefa do
historiador discernir esses grandes movimentos. Uma vida autêntica é aquela
vivida não somente de acordo com as noções de autoconsciência e temporalidade
pessoais, mas também da estrutura baseada na historicidade e no destino.
Os
escritos de Heidegger têm fama de ser extremamente obscuros. Isto ocorre não
somente em razão do seu pensamento tentar infiltrar-se nas questões últimas e
mais abstratas, mas também por fazer um uso altamente idiossincrático da
linguagem. John Macquarrie, um dos tradutores de O ser e o tempo, descreve no
prefácio ao livro como Heidegger utiliza as palavras de uma maneira incomum,
produzindo seu próprio vocabulário e explorando a capacidade da língua alemã
para construir novas palavras compostas. Macquarrie escreve:
Advérbios,
preposições, pronomes, conjunções são levadas a servir como nomes; palavras que
sofreram uma longa história de mudanças semânticas são novamente utilizadas nos
seus sentidos mais antigos. Especialmente os idiomas modernos estão geralmente
muito aquém dos limites com os quais eles ordinariamente seriam aplicáveis.
Trocadilhos não são de modo algum incomuns e frequentemente uma palavra-chave
pode ser usada em diversos sentidos, sucessivamente ou simultaneamente. 9
Os
últimos escritos de Heidegger são até mais difíceis que os primeiros trabalhos,
com um tom oracular, um estilo enigmático e conciso. Como consequência, ele
passou a ser visto por muitos com um misto de irritação e reverência. Sua
produção é considerável, abarcando um amplo leque de tópicos: lógica, filosofia
da ciência, filosofia da história, ontologia, metafísica, linguagem,
tecnologia, poesia, filosofia grega e matemática. A despeito da obscuridade das suas ideias, sua influência espalhou-se muito
amplamente. Ele via a si mesmo como um filósofo cuja missão seria redimir a
civilização, que foi vendida à tecnologia, à ciência e ao cálculo racional; tal
"queda do Ser" deveria ser resgatada, levando uma vez mais o Ser
"para casa". A intensidade com que coerentemente expôs e proclamou
esse tema é notável. Num artigo denominado "Martin Heidegger aos
oitenta", Hannah Arendt escreveu: "Heidegger nunca pensa sobre algo.
Ele pensa algo."10
NOTAS
1. Embora Dasein em alemão signifique
literalmente "estar presente, estar aqui (aí, lá); ter vindo; existir,
haver ou ter", tais significados não esgota o conceito de Dasein na
filosofia de Heidegger. (NT)
2. O Partido Nazista havia sido fundado em 1919,
e desde então sua atuação tinha sido caracterizada pela xenofobia, racismo,
antiparlamentarismo, homofobia e reacionarismo político. Com a difusão desse
movimento, muitos dos contemporâneos de Heidegger, incluindo seu professor na
Universidade de Freiburg, Edmund Husserl, tornaram-se alvo dos nazistas por
esposarem ideias liberais, libertárias e socialistas ou em razão de possuírem
ascendência judaica. Assim, os motivos que levaram à mudança de posição de
Heidegger frente ao nazismo não podem ser limitados a uma tomada de consciência
tornada possível apenas com a ascensão destes ao poder. Isto porque o passado
do movimento nazista já prenunciava claramente o que seria a Alemanha sob o
comando de Hitler a partir de 1933. (NT)
3. Veja verbete sobre Husserl.
4. Heidegger, Heingand time, trad. John
Macquarrie e Edward Robinson. Oxford: Blackweel, 1962, p. 83 (Parte Um, Divisão
1,11).
5. Em língua alemã, a palavra sorge significa
exatamente preocupação, cuidado, inquietação. (NT)
6. Ibid., p.23l.
7. "A angústia heideggeriana é a própria intuição
do nada, ou do vazio em cujo seio o ser humano flutua e que o faz entender que
é um ser-para-o-nada ou para-a-morte, Se/n-zum-Tode: o homem "vive" o
seu próprio nada, na medida em que sua existência não é todo o seu ser, mas
simples aspiração de vir a ser, que nunca é satisfeita e jamais se completa,
porque o ser-aí do homem consiste em não ser a totalidade do seu ser"
(Almir de Andrade. As duas faces do tempo - ensaio crítico sobre os fundamentos
da filosofia dialética, José Olympio/Edusp, 1971, § 128. (NT)
8. A este respeito, temos que "A filosofia
existencialista, especialmente na obra de Heidegger, representou outro marco
importante no mesmo caminho, por ter vinculado os conceitos fundamentais de ser
e de tempo e analisado o tempo como algo tecido nas malhas do próprio ser,
incorporado ao ser como realização de suas possibilidades próprias, na medida
em que este se temporaliza existindo e existe temporalizando-se. Consistiu,
portanto, em outra reabilitação do tempo próprio, agora concebido como horizonte
das possibilidades do ser do homem." (Almir de Andrade, 1971 § 349). (NT)
9. Ibid.,
Prefácio do tradutor, p. 14.
10. Hannah Arendt,"Martin Heidegger
at eighty" in Heidegger and modern philosophy, ed. M. Murray. New Haven e
London:Yale University Press, 1978, p. 296.
VEJA
TAMBÉM NESTA PUBLICAÇÃO Duns Scot, Kierkegaard, Husserl, Sartre.
PARA
LER HEIDEGGER
Em
português:
A
caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, 2003.
A
origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 2000.
Ensaios
e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
Heráclito.
Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
Introdução
à metafísica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.
Metafísica
e niilismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.
Ser
e tempo. 2 vols. Petrópolis: Vozes, 2001.
Sobre
o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
PARA
SABER MAIS
Biemel.W.
Martin Heidegger. London: Routledge and Kegan Paul, 1977.
Blackham,
H.J."Martin Heidegger" in S/x existentialist thinkers. London:
Routledge and Kegan Paul,
1961.
Ettinger, E. Hannah Arendt e Martin Heidegger. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
Farias,Victor. Heidegger e o nazismo. São Paulo: Paz e Terra, 1988. Inwood.
Michael. Dicionário Heidegger. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. LyotardJ.F.
Heidegger e os judeus. Petrópolis: Vozes, 1994. Macquarrie, J. Existentialism.
Harmondsworth: Penguin, 1973. MehtaJ. L. The philosophy of Martin Heidegger.
New York: Harper and Row, 1971. Murray, M. (ed.) Heidegger and modem
philosophy. New Haven e London: Yale University Press,
1978.
Nunes, B. Heidegger & Ser e tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. Safranski,
R. Heidegger. São Paulo: Geração, 2000. Steiner, G. Heidegger. Sussex:
Harvester Press, 1978.
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